Objetar à cidadania: uma campanha
As matérias lecionadas na disciplina contestada decorrem de um pacto constitucional, pelo que não estão “à disposição” da consciência dos pais dos alunos.
Já quase tudo foi escrito sobre a pretensão de um grupo de pessoas de pôr termo ao carácter obrigatório das aulas de Cidadania e Desenvolvimento. Já sabemos que o conteúdo da disciplina é inofensivo, definido, aliás, por subscritores da indignação súbita. Já sabemos que circulam por aí mentiras abjetas sobre o que se leciona em concreto, para tanto concorrendo gente ideologicamente inspirada em Damares Alves, no Brasil, ou Viktor Orbán, na Hungria, e já sabemos que após artigo aqui publicado do secretário de Estado João Costa, que trata de factos, não faltou quem reincidisse na mentira. Há quem insista, sem pudor, em escrever que João Costa “chumbou dois alunos”, há quem insista em ocultar o que diz a lei em caso de faltas injustificadas, há quem tenha apelidado a disciplina de “sexo, género e interculturalidade”, a mesma pessoa, Nuno Melo, claro, que avançou com a espantosa notícia segundo a qual algumas crianças tinham assistido a uma palestra “sobre 67 tipos de sexualidade, como a atração sexual por objetos inanimados”.
Já sabemos, enfim, do ódio. Porque é de ódio que se trata.
São os temas da sexualidade e igualdade de género que são tidos por “ideológicos”, daí o recurso à figura da objeção de consciência. Os argumentos variam, são todos abusivos, desde logo das crianças e dos jovens, mas começa-se logo pela falácia de comparar a cidadania com a religião e moral, como se os signatários não soubessem que cabe ao Estado promover a primeira e apenas respeitar e garantir o livre exercício da segunda.
O meu camarada Sérgio Sousa Pinto distingue-se dos restantes indignados. Tem a disciplina por “inútil”, faz-lhe espécie que se chumbe por não se saber separar o lixo e advoga com fervor o ensino da história, por exemplo. Mas é uma bizarria jurídica invocar a objeção de consciência perante uma mera “inutilidade”, na disciplina em causa não se chumba por falta de aproveitamento e sabemos todos da inutilidade de se ter uma enciclopédia na cabeça se essa cabeça estiver povoada de sexismo, racismo ou homofobia, desvalores que perseguem, humilham e matam.
Quanto à “ideologia”, cai-se no logro de imaginar uma Constituição neutra. A Constituição é a lei que nos une coletivamente e contém, por isso, a formulação de regras de conduta da polis, desde logo regras de conduta que se dirigem aos cidadãos, regras sobre direitos fundamentais. É nesse pacto comum que encontramos a opção da comunidade política pela não discriminação em função do sexo, da orientação sexual ou da “raça”. É também na Lei Fundamental que está inscrito o dever do Estado de promover a igualdade e de promover os direitos fundamentais. A escola, não é, por isso, neutra. A escola pública não é um espaço fora da Constituição. Pelo contrário, incumbe ao Estado adotar políticas de igualdade e de integração desde a infância de acordo com os princípios e valores constitucionais e não de acordo com a moral dos pais que erguem as crianças como bandeiras políticas. Absurdo, por isso, invocar a proibição constitucional de programação da educação e da cultura segundo diretrizes ideológicas.
A facilidade com que se invoca o direito à objeção de consciência é reveladora da instrumentalização da Constituição para o que interessa à tal agenda do ódio. A objeção de consciência consiste no direito de não cumprir obrigações ou não praticar atos que estejam em conflito muito forte com a consciência de cada um. Para além de ser um direito cujo exercício depende de um procedimento legal (tem de ser reconhecido o estatuto de objetor de consciência), o que aqui releva é ser evidente que as matérias lecionadas na disciplina contestada decorrem do acima mencionado pacto constitucional, pelo que não estão “à disposição” da consciência dos pais dos alunos, tal como um pai altamente patriarcal não pode recusar a escolaridade de uma filha por não concordar com turmas de composição mista.
É por isso uma evidência que a não há nada de jurídico na pretensão de quem, na verdade, insisto, se inscreve na linha que liga a onda reacionária que vai do Brasil à Hungria. Primeiro escolhem o alvo a abater e depois inventam os argumentos jurídicos de trazer por casa. Pelo meio, na proteção de um mundo unidimensional, inventam falsos factos à velocidade da luz. É uma campanha.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico