Os superlativos 400, a caixa dos milhões e o advento do homodemagogo
Cada curador tem os seus artistas preferidos que tenta promover, cada artista tem amigos artistas, todos os artistas desejam que as suas obras sejam adquiridas. É natural, todos precisam de viver. Já uma Colecção do Estado, que defenda realmente o interesse público, só pode ser feita por alguém com alguma lucidez, acima de redes de cumplicidades e disputas privadas.
A beatitude de Pedro Portugal e de Manuel João Vieira é enternecedora. São muito democratas, mas, logo ao primeiro feijão-frade — tive receio de usar um grão-de-bico, porque o bico podia ferir — bem assestado no meio da testa, sentem-se ofendidos. Puxam imediatamente de palavras e expressões originais e grandiosas: jornal respeitável, bom-nome, conversa de redes sociais (que eu frequento com raiva assanhada, é só ir verificar), gravoso, aleivosia, desprezível, sacrifício, suspeita, insinuação, honra, estrugido, furda (bela palavra, arrancada a ferros), discurso de ódio, verve medíocre, obras tombadas, lixo, Zé.
Para a próxima, à riqueza lexical destas ofensas, já poderão acrescentar feijão-frade, grão-de-bico e testa. Mas, digam o que disserem a partir daqui, Pedro e Manuel, não haverá próxima vez: é esgotante ler portarias.
Especificamente esta portaria, a única que li com atenção em toda a minha vida e que parece ter sido escrita num dia de nevoeiro cerrado. Foi doloroso lê-la, mas, com um pequeno esforço, acabam por perceber-se as motivações de quem esteve por trás da sua redacção: produzir uma luz tão intensa que encandeie quem tenha a coragem de tentar lê-la. Esta é também uma das razões porque, aos artistas de portaria em punho, sempre preferi os de espada à cintura, bêbedos, ou de espingarda bem levantada: vão directos ao assunto, isto é, fazer arte relevante. Mas este é o meu gosto pessoal, que não quero impor a ninguém.
O texto que escrevi, A caixa de tintas e pincéis, teve pelo menos um mérito: fazê-los sair da caixa. Saíram mais velhos, claro, mas com a mesma falta de graça que tinham há 30 ou 40 anos. E o único que tinha alguma, Manuel João Vieira, entretanto perdeu-a. Os homeostéticos que permanecem calados parecem-me ser os que envelheceram melhor. Já o homoamanuensis Pedro Portugal sofreu uma mutação e reencarnou na estirpe artística do homodemagogo tão em voga. A estética, essa, que já era fraca, também se esfumou.
É evidente que o texto que escreveram em resposta ao meu, embora pretenda parecer ter sido escrito por duas pessoas, teve por único autor Pedro, que arrastou Manuel para a fotografia geminada do cabeçalho para mostrar que tem o apoio do homeostético mais popular de Portugal. O estilo da escrita, que não classifico para não me repetir, é claramente seu e as esmaecidas graças, que só lá estão para dar um pouco de colorido ao texto, são de Manuel.
Os homeostéticos nunca me incomodaram por aí além, a não ser ter tido que levar com toda aquela alacridade juvenil em cheio nos olhos quando acontecia cruzar-me com algum deles nos velhos corredores do Convento de São Francisco, como já confessei. O que me incomoda é este seu regresso à liça depois de tantos anos de tristonho apagamento, pelo menos de três deles, travestidos agora em amigos dos artistas — extintos como grupo em 1986, como fazem questão de lembrar, continuam a mover-se em matilha. O arquitecto deste verdadeiro ressurgimento é, evidentemente, Pedro Portugal. Há marcas da sua inconfundível pegada por todo o lado.
A pegada do homodemagogo para as artes tem contornos bem definidos: uma caixa com milhões para distribuir por, pelo menos, 400 artistas de relevo, e um olho clínico para detectar o que é lixo logo à primeira. Portugal é, segundo o homodemagogo, não só o país do mundo com a maior percentagem de artistas de relevo per capita na actualidade, como em toda a história da arte universal. Seriam 401 comigo, mas, para que Pedro e Manuel não fiquem já nervosos, não só nunca tive a presunção de me considerar um artista de relevo, como faço parte da Colecção do Estado desde 1988, com duas pinturas adquiridas pela então Secretaria de Estado da Cultura na primeira exposição individual que realizei, José, se quiseres come as sardinhas todas, na galeria de arte dedicada à fotografia Ether/Vale tudo menos tirar olhos, entretanto extinta. Não tombei com o lixo do BPN na Colecção do Estado como erroneamente afirmam; mas grandes especialistas em lixo são mesmo Pedro e Manuel, não eu.
Mas o texto de Pedro e Manuel pode ter uma segunda interpretação. A colecção de arte contemporânea do Estado português não é afinal apenas uma, mas várias, espalhadas por diferentes sítios do país — havendo até um originalíssimo núcleo de obras desaparecidas (à volta de 90) que ninguém sabe onde param. Esta colecção, que inicia agora a sua actividade pública em Coimbra com a exposição do lixo tombado do BPN (nas palavras de bom augúrio de Pedro e Manuel), inaugura um capítulo inteiramente novo na atribulada história da colecção, ou colecções. Sendo assim, Pedro e Manuel teriam realmente tentado comprar-me, não fosse o impedimento legal de só se poder comprar obras de artistas que ainda não façam parte da colecção. É bom saber que Pedro e Manuel cumprem escrupulosamente a lei. Mas deixem-me que vos diga: só terem colocado a hipótese de me comprar já me enche tanto de orgulho que podem ficar quietos para todo o sempre no que me diz respeito. No entanto, há uma coisa que continua a intrigar-me: se, como dizem, tombei com o lixo, eu sou uma parte constituinte desse lixo, não é verdade? Agradecia então que me esclarecessem: compram só arte de relevo ou também ponderam comprar lixo?
E eu fui perguntar à caixa, como me aconselham. Os artistas que fizerem parte da comissão cumprem um longuíssimo período de nojo de dois anos, antes de a comissão seguinte os poder ir comprar a correr. Assim, Manuel, já pode ser comprado em 2023; quanto a Pedro, ainda terá de penar até 2025. Mas, eventualmente, todos acabarão um dia por ser comprados, uns mais depressa do que os outros, é certo, mas a vida é assim; e o último que não desanime, porque, mesmo que demore 400 anos, comprá-lo-ão. É esta a promessa eleitoral do homodemagogo, que, pelo menos a 400 passa a mão pelo pêlo, chamando-os a todos artistas de relevo. Que cumpra o que promete é o que lhe devem exigir os 400. E, pelo menos, uma obra de cada artista vezes 400 artistas, como é fácil de concluir, dará uma excelente colecção de arte que nada terá a ver com lixo.
A ministra da Cultura, Graça Fonseca, anunciou publicamente, em conferência de imprensa, terem sido já compradas obras de 60 e tal artistas em dois anos. Onde é que se viu no mundo uma tal correria? É comprar como se não houvesse amanhã e antes que seja tarde. É aproveitar, enquanto os há, os milhões que o homodemagogo se vangloria de ter conseguido do Governo. Depois de 20 anos de seca, e depois de este dinheiro secar — porque os governos caem com estrondo e tudo muda porque a clientela muda e nada tem continuidade —, seguir-se-ão outros 20 anos de estio violento e, mais uma vez, uma colecção de arte do Estado com pés e cabeça ficará por fazer.
Cada curador tem os seus artistas preferidos que tenta promover, cada artista tem amigos artistas, todos os artistas desejam que as suas obras sejam adquiridas. É natural, todos precisam de viver. Já uma Colecção do Estado, que defenda realmente o interesse público, só pode ser feita por alguém com alguma lucidez, acima de redes de cumplicidades e disputas privadas.
Vejamos este caso concreto. Em tempo de pandemia, e a pretexto dela, e quando várias classes profissionais recorreram com êxito à videoconferência, ficou por realizar uma assembleia de artistas. Mas, mesmo assim, Pedro Portugal (quem mais havia de ser?), transitou directamente para a segunda comissão de compras sem ter passado pelo crivo de uma nova votação, com o frouxo argumento de ter sido o segundo artista mais votado na primeira assembleia de artistas. Não vejo como este facto não possa ser questionável, nem como todos se nomeando uns aos outros, em forma de teia de aracnídeo, não possa ser visto se não como uma caricatura grotesca de democracia.
A história da novíssima Colecção do Estado, que ainda agora começou, parece-se já com uma extensa e intrincada renda de bilros com grossos e feios nós encravados por todo o lado. E este assunto não pede, como sugerem Pedro e Manuel, um aborrecido livro de memórias, mas uma interessantíssima investigação jornalística que tenha a coragem de começar a desatar estes nós.
Quanto à carta de 2018 ser ou não ser também um manifesto, o e-mail que recebi a solicitar a minha assinatura dizia assim: “Olá Zé, Em anexo a carta/manifesto, bjs e obrigada…”. Ou Pedro Proença induziu esta pessoa em erro, ou o erro foi desta pessoa; meu é que não foi de certeza. De qualquer maneira, a longa carta apareceu depois em público devidamente emoldurada para memória futura, como uma preciosidade, e segurada bem alto por duas pessoas em indumentária de fantasia, uma de cada lado, para uma bonita fotografia. Se não era um manifesto, a carta foi pelo menos apresentada com a pompa dispensada aos manifestos. Tudo isto para que ficasse bem explícito que se estava a fazer história com H grande.
E fiquem descansados, Pedro e Manuel, que já manifestei às galerias que me representam em Portugal, tanto em Lisboa, como no Porto, o veemente desejo de que publiquem na íntegra, sem esquecer a enigmática fotografia da espingarda de focinho caído, o vosso texto de jornal nas respectivas páginas de Facebook, lugar que não frequento.
A caixa dos milhões já tem o feroz homodemagogodragão à porta, a guardar bem a entrada. Que ninguém se atreva a ir lá abocanhar qualquer coisinha à socapa. Os milhões já parecem como se fossem dele. Mãos na massa. Enquanto há.