Saúde mental – da prioridade política esquecida à dignidade do indivíduo
As políticas atuais não servem e é necessária uma reforma profunda nas respostas do SNS aos problemas da Saúde Mental.
A Saúde Mental é uma área da política de saúde que está fortemente relacionada com a forma como a sociedade valoriza o papel do indivíduo. Num contexto de agravamento da qualidade de prestação de serviços de saúde causado pela pandemia, numa sociedade que se preocupa principalmente com politicas de grupo mas falha na atenção e nos cuidados a cidadãos individuais, é preciso atuar em várias frentes – na frente política, quer de saúde quer com a construção de uma sociedade próspera e que gere esperança de um futuro melhor para todos, com capacidade de assumir risco e oportunidade para recomeçar, e numa outra frente, a da criação de uma cultura que atribua dignidade e importância à individualidade de cada pessoa.
As doenças mentais estão muitas vezes num mundo escondido. Depressão, ansiedade, mal-estar continuado, perturbações psicóticas, demências, são algumas das muitas tipologias com diversas gravidades que necessitam tratamentos específicos e necessidade de acompanhamento. São realidades muitas vezes ocultas, desvalorizadas, não diagnosticadas e não acompanhadas. A falta de deteção das diferentes patologias não é apenas uma questão de recursos na saúde, mas também de cultura. A origem na sociedade reflete-se no doente não pedir ajuda, no estigma associado a este tipo de patologias, e na falta de capacidade de saber interpretar sinais de alerta em outrem. Nos serviços de saúde também a falta de recursos, a falta de capacidade de resposta, a incapacidade de detetar a doença. E todos estes problemas foram agravados em tempos de pandemia.
A situação é particularmente grave para os idosos. À situação de angústia em que muitos anciãos vivem, numa idade particularmente atreita a problemas mentais, soma-se a dor do isolamento e do distanciamento forçado, juntando à incerteza de um fim à vista a falta de calor humano, a dificuldade de compreensão da situação e a suspeita de abandono. E outros idosos ainda que preferem aceitar conscientemente o risco e tentar fazer as suas vidas normais, com a consequente pressão social negativa.
Também muitas famílias com pais em teletrabalho e com filhos em casa viram reunidas condições ideais para o agravamento da pressão e da ansiedade. Foram muitas as situações descritas pela imprensa de famílias em que faltavam computadores, acessos à internet, secretárias e cadeiras adequadas para tantas horas de esforço. Famílias que tinham ajudas familiares, ATLs e amigos presentes, deixaram de ter deixando os cuidadores informais com dificuldades acrescidas. Jovens que anseiam pelo contacto social ficaram retidos, como que aprisionados, em idades para as quais o sentido de urgência é muito mais relevante que para adultos. O facto de os pais estarem a trabalhar na companhia de crianças que exigem atenção constante, para quem os adultos devem estar sempre disponíveis nos papéis de professor, explicador, disciplinador, animador e companheiro de brincadeiras, resultaram em muitos casos em situações de desespero familiar.
Para as pessoas que vivem sozinhas, as perdas das suas rotinas sociais e dos contactos no exterior causaram um impacto desproporcional a muitos níveis.
Um dos exemplos mais gritante e talvez menos falado é relativo à necessidade que as crianças mais novas têm na brincadeira e na socialização, partes fundamentais do desenvolvimento de cada pessoa. Quando se usa uma máscara e se observam políticas de distanciamento, a passagem casa-família e a gestão dos afetos ganham uma dificuldade acrescida. Infelizmente, olhando para as políticas anunciadas para os próximos meses, esta situação tenderá a agravar-se.
O confinamento é um tremendo potenciador de violência psicológica e física, aumentando a pressão sobre pessoas em risco, e é um catalisador para o surgimento de novos casos. O problema amplificou-se ainda mais porque o confinamento dificulta a denúncia.
Como se tudo isto não fosse suficiente, os impactos da crise económica anunciada poderão exponenciar os casos de doenças mentais. Há muito que é conhecida a relação entre insegurança económica e saúde mental, devido à incerteza causada pela diminuição de rendimentos ou desemprego, pelo incumprimento de obrigações e pela ausência de antecipar uma saída.
Acontece que todos estes problemas se agravam quando o cenário pré-pandemia já era preocupante. Em 2018, em Portugal, venderam-se mais de dez milhões de embalagens de ansiolíticos e quase nove milhões de antidepressivos. Portugal era já o 5.º país da OCDE com o maior consumo per capita de antidepressivos, apresentando o dobro de taxa de consumo de diversos países europeus.
A saúde mental é um parente pobre da saúde. Para lá dos problemas crónicos da falta de recursos e da deficiente organização do SNS para responder aos problemas da saúde mental, há também um problema importante de prioridade. As respostas que deviam ser dadas pelos decisores são sistematicamente adiadas. O tema é pouco “sexy”, pouco eleitoralista e por isso tem sido tão maltratado. As políticas atuais não servem e é necessária uma reforma profunda nas respostas do SNS aos problemas da Saúde Mental.
Mas não é só nas políticas que tem de haver mudanças. É imperioso mudar a atitude cultural da sociedade e é imperioso que os casos de saúde mental sejam vistos de uma forma mais construtiva, sejam esses casos ligeiros ou graves. Temos que deixar de reagir a situações de saúde mental dizendo que são “fraquezas” ou que são “fruto de episódios da vida”. Nesta complacência generalizada, contribuímos muitas vezes para que não haja um acompanhamento clínico atempado, perdendo a eficácia do tratamento nas fases iniciais da doença. Há uma pressão social que se exerce de diversas formas, que sugere comportamentos em direção de um determinado sucesso ou estilo de vida criando situações muitas vezes difíceis de lidar. De vez em quando reflete-se um pouco, por exemplo na ocorrência de uma fatalidade ou de um caso relevante de uma celebridade que enche noticiários, para logo se voltar aos mesmos hábitos.
Em Portugal não se convive bem com uma mentalidade de risco. Por exemplo, lançar um negócio e correr mal é muitas vezes considerado cruelmente como falhanço. Temos uma sociedade que objetiva e culturalmente dá pouco espaço para recomeçar empregos, estilos de vidas ou lutar por sonhos. Será fundamental reconhecer que falhar e recomeçar não é nem uma derrota, nem uma vergonha.
Acredito numa sociedade que respeite o indivíduo e valorize a sua individualidade. Um indivíduo mais autocapacitado, mais autoconsciente, que tenha por si só uma maior capacidade de realização numa sociedade próspera, podendo assim também estar mais preparado para lidar com alguns vetores que agravam a saúde mental. E também, por outro lado, saber-se olhar para “os outros”, reconhecer e contribuir para que a necessidade de apoio médico não seja “fraqueza”, seja nas doenças mais ou menos profundas. Estar numa sociedade que respeita os outros e os seus limites.
Em suma, a saúde mental é um tema multifacetado: a componente de política de saúde que vai da deteção dos casos ao acompanhamento clínico, a própria forma como a sociedade encara o tema e a forma como (não) se valoriza o indivíduo. Caberá aos políticos e autoridades acelerarem as políticas de saúde e darem bons exemplos mas, quer em sociedade, quer no respeito e valorização do indivíduo, cada um de nós tem um papel a desempenhar.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico