“Se não cuidarmos da caça acabamos com ela”
As imagens de milhares de pessoas de arma ao ombro que chegavam ao Alentejo para matar os coelhos, as lebres e as perdizes que podiam já faz parte da memória, mas continua a faltar formação aos caçadores, gestores de caça e agentes da fiscalização.
Nas décadas de 70 e de 80 do século passado, o “exército” de caçadores em Portugal chegou aos cerca de 400 mil indivíduos, “em parte oriundos das grandes cidades, sem ligação ao campo” tipifica ao PÚBLICO, João Grosso, caçador, gestor de caça e fundador da Escola de Caça, Pesca e Natureza (ECPN) em Mértola. Recorda o modus operandi dos caçadores na região alentejana: “Deslocavam-se em grupos, em carrinhas de nove lugares, aos domingos e feriados e varriam à força de tiro os locais onde pensavam haver animais. Matavam o maior número de peças de caça sem nenhum tipo de preocupação cinegético-venatória que os levasse a pensar que deveriam forçosamente deixar alguns animais para a sua reprodução”.
Percebeu-se na altura que a regeneração das espécies cinegéticas, por si só, não podia suportar tantos caçadores nos coutos de caça. A falta de critérios na gestão dessas espécies revelou comportamentos que conduziram “à devastação e até quase ao extermínio da fauna silvestre” onde imperava o regime de “terreno livre”, sublinha o gestor de caça.
As mudanças que passaram a condicionar as práticas desordenadas só surgiram na sequência da publicação da Lei n.º 30/86 de 27 de Agosto. Este instrumento legislativo veio possibilitar a recuperação dos “escassos recursos faunísticos deixados por essas pessoas de quem a caça herdou a má fama e que, diminuiu drasticamente os efectivos” recorda João Grosso.
Da popularidade à “crise de vocações"
Mas quando se esperava que o exercício da caça fizesse uso de práticas mais racionais, surge uma acentuada crise de vocações. O fascínio que marcou o exercício da caça, durante décadas, deu lugar ao distanciamento da sua actividade. “Basta ver a queda no número de licenças e a noção que se tem de que não entram na caça o mesmo número dos que saem”, observa o caçador, sublinhando que, dos anos 80 até ao presente, o seu número sofreu uma brutal redução que se situará agora “nos 130 mil indivíduos”.
“O que é que mudou para que o entusiasmo pela caça sofresse uma tão acentuada quebra ao longo das últimas duas décadas?”, interroga-se João Grosso, avançando com uma das justificações a que se recorre com mais frequência: deixou de haver espécies cinegéticas em quantidade suficiente. Mas, acrescenta que as explicações para o fenómeno não são tão simplistas. O sector da caça “é um pouco fechado e preconceituoso” e prevalece uma “grande resistência” à formação, sobretudo nos aspectos “organizativos e turísticos da actividade” que revela como a “mentalidade de parte dos caçadores é pouco sensível aos valores da formação e conservação que muitos ainda consideram ameaças ao sector”. Em paralelo a estes constrangimentos, o gestor dá conta de uma nova realidade que está a condicionar a caça: “A agro-pecuária industrial que nos é imposta pela Política Agrícola Comum e o avanço das monoculturas superintensivas de regadio que comprometem a biodiversidade”.
Áreas anteriormente ocupadas por zonas de caça, sobretudo no sul do país, são neste momento extensos territórios preenchidos por culturas permanentes (olival, amendoal, vinha) que não se adequam ao habitat de espécies cinegéticas como a lebre, o coelho bravo e a perdiz. “Este tipo de culturas tem repercussões enormes na fauna e na flora. No olival e no amendoal há zero insectos e sem insectos não há biodiversidade sem a qual não consigo criar caça” observa o gestor de caça.
A diversidade de insectos é fundamental. A perdiz, tal como a abetarda ou o sisão, são espécies estepárias e nidífugas. “Todas habitam a estepe alentejana e não são, comprovadamente, aves de floresta. Ao eclodirem os ovos no solo, as crias abandonam imediatamente o ninho procurando o alimento rico em proteína que são os insectos”, explica João Grosso.
Também nos territórios onde impera a produção de ovelhas e bovinos, a microfauna que suporta as espécies cinegéticas, como a perdiz, está condicionada, porque também há uma evidente perda de biodiversidade. É neste cenário em que se assiste a uma invulgar transfiguração da paisagem que vai substituindo o montado e as zonas estepárias no sul do país, por contínuos de arvoredo denso das oliveiras e amendoeiras, que se equaciona o estado actual da caça e que explica, em parte, a “fraca adesão de jovens em paralelo com o envelhecimento dos caçadores” descreve João Grosso.
“O caçador destruidor tem de dar lugar ao caçador conservador”
Mesmo assim, um estudo realizado em 2016 pelo Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV) concluiu que os caçadores portugueses gastam 103 milhões de euros em bens e serviços; 85 milhões em armas, munições, seguros e taxas; 35 milhões em acessórios, vestuário e calçado; 71 milhões em viagens, dormidas e refeições e 33 milhões nos cães. O negócio da caça em Portugal tem um valor estimado de 330 milhões de euros, acrescenta o INIAV.
Já fazem parte da memória as imagens com milhares de caçadores, de arma ao ombro, muitos deles envergando camuflado – a maioria passou pelas frentes de guerra coloniais — que chegavam ao Alentejo na expectativa de levar no regresso a casa o máximo de peças de caça. No entanto, subsiste uma questão de fundo. A “falta de formação dos caçadores e gestores, e mesmo dos agentes da fiscalização que ajudou a perpetuar dentro das actuais zonas de caça, a actividade cinegética descontrolada e desregrada”, denúncia João Grosso, deixando um aviso: “Se não cuidarmos da caça acabamos com ela”.
O futuro da caça em Portugal coloca uma questão pertinente: “O caçador destruidor tem de dar lugar ao caçador conservador.” A gestão da caça “faz-nos falta como garante da biodiversidade”, clarifica o gestor de caça, no início da época venatória 2010/2021. E interroga-se: “O que seria dos predadores de topo, como o lince ibérico, a águia Imperial, a águia-real ou o abutre negro, se não fossem os cuidados e as boas práticas de gestão cinegética, colocadas na criação as perdizes vermelhas, coelhos bravos e lebres e que ocupam a maior parte da dieta alimentar destes exigentes predadores?”