Um dia em Nova Iorque pode ser algo assim: 9h, encontro com o Pierre. Nova-iorquino de gema, ascendência haitiana, pai médico, mãe bailarina. Infância passada na convivência da família de Malcom X. Leva-nos por um périplo que inclui uma subida de barco pelo rio Hudson…. E pelo caminho a vertigem de uma cidade imensa. The Yankee Stadium. Investigação científica e experiências com pássaros no Hunter College. A mítica casa de Betty Friedan. Lojas com milhares de pássaros nas caves. Uma histórica loja de música no Harlem onde se fala galego. A parte rica do Harlem (quem diria!). Jantar coreano downtown. De novo no Harlem, bebidas e uma lição de história no mítico Showman, com uma porto-riquenha a cantar desinibida I got my mojo workin’…
Algures pelo meio, The Underground Railroad. Ali, aquele ponto onde escravos foragidos emergiam do subsolo e viam o sol pela primeira vez como seres humanos livres. Quase uma década depois, Colson Whitehead escreve A Estrada Subterrânea e o livro vai parar ao quadrado de chão sobrelotado ao lado da cama d’A Boa Feminista. A história da fuga de Cora dá todo um novo sentido àquele momento inesquecível, que sobreveio no meio da amálgama de uma visita guiada assoberbante, quase impossível de assimilar na totalidade.
Se Cora vive na ficção, Harriet Tubman viveu mesmo esse momento, calcorreou mesmo esses trilhos clandestinos e subterrâneos, teia de fuga colectiva que nos deve fazer pensar que o foco não pode ser nunca o que nos separa, na vida, na história, na cultura, mas antes o que nos aproxima. Aqui não cabe uma sinopse do livro, ou uma biografia de Tubman ou sequer considerações sobre a coragem, a sobrevivência, a maldade do exercício do poder, as tergiversações da política ao longo dos tempos, sobre a necessidade de reparações históricas ou sobre a inocência que é necessária para conseguir viver com a consciência destas verdades sem literalmente quebrar o coração. Cabe tão somente aludir a essa comunidade crescente de resistentes que identifica Angela Davis e à qual todos podemos pertencer, independentemente das nossas circunstâncias pessoais e individuais. É “importante lembrar os perigos do individualismo”, diz-nos: estamos todos interligados, pessoas e lutas.
As nossas circunstâncias — que se fazem também dos nossos medos e da nossa raiva — não devem limitar a nossa visão do mundo, que é como quem diz, a nossa visão do outro. É o que A Boa Feminista vai tentando dizer à filha, esperando que um dia a pequena entenda não só as palavras, mas sobretudo o seu sentido. Depois da tal carta, um dia dir-lhe-ei: “Se entendes isto, entenderás todas as mulheres do mundo, deste e de outros tempos. As que não têm voz, as que não têm essa pele branca, as que lutam pela sobrevivência, as que não são livres de pensar. Não penses que mulher é o que vês no espelho ou o que sentes no teu corpo. Não julgues nem penses que “nasceste mulher”. Não esqueças as mulheres antes de ti, respeita as mulheres que te ladeiam hoje e sê generosa com as mulheres por vir. São todas tuas filhas. Pensa sempre no que nos aproxima enquanto mulheres e não naquilo nos distingue individualmente”. Porque é isso mesmo que distingue o feminismo: “O Feminismo é para todas” (bell hooks). E todas. Um livro e não uma página.