Covid-19. Vacina russa gerou resposta de anticorpos e efeitos adversos não são graves — resultados preliminares
Resultados preliminares dos ensaios clínicos de fase 1 e 2 mostraram que a vacina russa contra a covid-19, chamada Sputnik V, não causou efeitos adversos graves e gerou uma resposta de anticorpos nas pessoas a quem foi administrada.
Os resultados preliminares dos ensaios clínicos de fase 1 e 2 mostraram que a vacina russa contra a covid-19, chamada Sputnik V, não causou efeitos adversos graves e gerou uma resposta de anticorpos nas pessoas a quem foi administrada.
A vacina é constituída por duas partes. Aos participantes foi administrada uma primeira dose e, passado 21 dias, um reforço da vacina, tendo participado nos dois ensaios clínicos um total de 76 adultos saudáveis (38 em cada ensaio). Os ensaios clínicos foram realizados em dois hospitais na Rússia e todos os participantes receberam a vacina, não existindo grupos de tratamento diferente (como acontece, por exemplo, quando um grupo recebe o tratamento e o outro recebe um placebo).
Os resultados foram publicados esta sexta-feira na revista científica The Lancet e mostram que, ao longo de 42 dias, não foram detectados efeitos secundários graves e que a vacina induziu uma resposta de anticorpos “em todos os participantes dentro de 21 dias”. Os resultados sugerem ainda que a vacina provoca “uma resposta de linfócitos T [células do sistema imunitário] em 28 dias”. Porém, os investigadores sublinham, em comunicado divulgado pela The Lancet, que são necessários mais testes e monitorização “para estabelecer a segurança e eficácia a longo prazo da vacina para prevenir a infecção por covid-19”.
Duas fórmulas e dois vectores
Nos ensaios clínicos foram testadas duas fórmulas da vacina: uma congelada, prevista para uso em larga escala através de cadeias de distribuição de vacinas globais já existentes, e uma fórmula liofilizada [desidratada] da vacina, desenvolvida para que possa chegar a regiões de difícil acesso — uma vez que pode ser armazenada a uma temperatura de entre dois e oito graus Celsius.
Os investigadores explicam ainda que a vacina inclui dois vectores de adenovírus, um adenovírus humano recombinante tipo 26 (rAd26-S) e um adenovírus tipo 5 (rAd5-S), que foram modificados para geneticamente para transportar o gene que codifica a “proteína da espícula” (ou spike) — que permite ao vírus entrar nas células humanas. Os adenovírus foram também enfraquecidos para que não fossem capazes de se replicarem nas células humanas e provocar doença (os adenovírus são normalmente responsáveis pela gripe comum). Estes tipos de vectores virais “são usados há muito tempo” e a sua segurança foi já “confirmada em muitos estudos clínicos”.
“Actualmente, várias vacinas candidatas contra a covid-19 que usam estes vectores e têm como alvo a proteína de espícula foram testadas em ensaios clínicos. Estas vacinas têm como objectivo estimular os dois braços do sistema imunitário — as respostas de anticorpos e células T — para que ataquem o vírus quando ele está a circular pelo corpo e ataquem células infectadas pelo SARS-CoV-2”, explicam os especialistas no comunicado da revista The Lancet.
“Para formar uma resposta imunitária poderosa contra o SARS-CoV-2, é importante que seja fornecida uma vacinação de reforço. No entanto, as vacinas de reforço que usam o mesmo vector de adenovírus podem não produzir uma resposta eficaz, porque o sistema imunitário pode reconhecer e atacar o vector. Isto iria bloquear a vacina de entrar nas células humanas e ensinar o corpo a reconhecer e atacar o SARS-CoV-2. Na nossa vacina, usamos dois vectores diferentes de adenovírus numa tentativa de evitar que o sistema imunitário se torne imune ao vector”, explica à The Lancet o autor principal do estudo, Denis Logunov, do Instituto Gamaleya, em Moscovo.
Quais os efeitos secundários?
Os autores referem que ambas as fórmulas revelaram ser “seguras e bem toleradas” durante o período em análise (de 42 dias) e que os efeitos secundários mais comuns foram dor no local da injecção (em 58% dos participantes), febre (em 50% dos indivíduos), dor de cabeça (42%), fraqueza ou falta de energia (28%) e dores musculares e articulares (24%), sendo que a maior parte dos efeitos adversos foram ligeiros e são comuns aos observados noutras vacinas, “particularmente as vacinas baseadas em vectores virais recombinantes”.
Foram detectadas respostas de anticorpos neutralizantes em todos os 40 participantes nos ensaios clínicos de fase 2 até ao 42.º dia após a vacinação, sendo que apenas foram detectadas estas respostas em 61% dos participantes na fase 1 que só receberam a primeira dose (rAd26-S).
Para compararem a imunidade decorrente da vacinação com a imunidade natural adquirida após uma infecção por SARS-CoV-2, os investigadores recolheram amostras de plasma convalescente de 4817 pessoas recuperadas da covid-19 (que tiveram apenas sintomas ligeiros ou moderados), tendo chegado à conclusão que “a vacinação produziu o mesmo nível de anticorpos neutralizantes contra o SARS-CoV-2” que as pessoas recuperadas da doença revelaram ter.
Os autores admitem, porém, que o estudo tem algumas limitações, incluindo o curto período de monitorização após a vacinação (de 42 dias), o facto de ter sido um estudo limitado e de não ter sido administrado, em paralelo, um placebo a alguns voluntários. Além disso, notam que, embora o objectivo fosse recrutar voluntários saudáveis entre os 18 e os 60 anos, no geral, o trabalho incluiu muitos jovens entre os 20 e 30 anos, pelo que são necessários mais estudos para avaliar os efeitos da vacina em diferentes populações, incluindo grupos mais idosos, indivíduos com outras condições médicas subjacentes e pessoas pertencentes a grupos de risco.
Fase 3 com 40 mil voluntários e monitorização online
Alexander Gintsburg, do Instituto Gamaleya, explica à The Lancet que “foram tomadas medidas sem precedentes para desenvolver uma vacina contra a covid-19 na Rússia”, tendo sido “realizados estudos pré-clínicos e clínicos que possibilitaram a aprovação provisória da vacina”. “O ensaio clínico de fase 3 da nossa vacina foi aprovado a 26 de Agosto. Está previsto incluir 40 mil voluntários de diferentes grupos etários e de risco e haverá uma monitorização constante dos participantes através de uma aplicação online”, acrescentou.
Em Agosto, Vladimir Putin anunciou que a Rússia se tinha tornado no primeiro país do mundo a registar uma vacina contra a covid-19. A vacina foi baptizada como Sputnik V, numa referência ao satélite enviado para o espaço pela União Soviética em 1957, o primeiro satélite artificial que inaugurou a corrida ao espaço.
A vacina, desenvolvida pelo Instituto Gamaleya, não passou pela fase 3 de ensaios clínicos, um momento fundamental em que a vacina é testada em larga escala e onde são detectados efeitos secundários e é comprovada a eficácia da mesma — o que gerou preocupações na Organização Mundial da Saúde e na comunidade científica.
Naor Bar-Zeev, especialista em saúde pública da Universidade Johns Hopkins (Estados Unidos) que não esteve envolvido no estudo, explica à The Lancet que os recentes resultados são “encorajadores”. No entanto, destaca a pequena dimensão do estudo e a importância de incluir outros grupos etários. O especialista nota ainda que “uma vacina que reduz a doença mas não previne a infecção pode, paradoxalmente, piorar as coisas” e transmitir uma falta sensação de segurança aos indivíduos, levando-os a negligenciar determinados comportamentos para conter a propagação do novo coronavírus.
“Quanto mais vacinas candidatas tiverem resultados iniciais satisfatórios, melhor. Em última análise, todas as vacinas candidatas terão de demonstrar segurança e comprovar uma eficácia clínica durável (inclusive em grupos de maior risco), através de grandes ensaios aleatórios, antes que possam ser amplamente utilizadas”, conclui Naor Bar-Zeev.