O dilema da cuspideira
Enquanto partido de protesto, substituir o PCP pelos Chegas deste novo mundo será um erro atroz.
Enquanto modelo de organização social, o comunismo já foi devidamente testado, apresentando resultados bastantes para se poder concluir sem reservas sobre os seus fracos méritos. Se do ponto de vista ideológico é totalmente legítimo manter a sua defesa, em termos práticos essa defesa condena os seus defensores ao inevitável purgatório da realidade e a uma vida política em negação.
Embora explique o seu definhamento pela incapacidade de conquista de novos eleitorados, nada disto invalida que, por razões de equilíbrio político, o Partido Comunista Português seja um partido deveras importante na cena política nacional. Além dos simpatizantes ideológicos, o PCP sempre se alimentou do voto de muitos descontentes com o sistema, por eles considerado iníquo e apodrecido. A opção de viabilizar a geringonça, embora compreensível à luz da doutrina, foi um risco político cujas consequências o próprio partido já percebeu. O aperto de mão ao PS, o mais cínico e manipulador dos partidos do sistema, indignou muitos simpatizantes e até militantes fervorosos reprovaram a decisão. Daí a opção comunista de se colocar, pelo menos para já, à margem de qualquer acordo para a viabilização do próximo orçamento.
No entanto, em termos tácitos, a realização da Festa do Avante! à revelia do mais elementar bom senso, mostra um novo acordo entre PS e PCP. O evento é visto pela grande maioria do eleitorado como um privilégio ilegítimo e converte o PCP num impensável partido aristocrático do sistema. É pena. Com todas as suas utopias desbotadas, os seus discursos empedernidos e os seus rostos cansados, em boa verdade, o PCP não tem feito mal ao sistema que nos regula. A sua irrelevância terá por inevitável consequência o crescimento de movimentos no polo político oposto.
Para quem alega que não se pode suavizar as palavras com uns extremistas e endurecer com outros, a diferença é que nos confortamos com a impossibilidade de uma maior expressão eleitoral do PCP e já conhecemos bem o que podemos contar dos comunistas. Apesar da sua cartilha radical e anacrónica, deles aproveitamos o respeito pelas regras democráticas, a contenção dos sindicatos a salvo dos anarquistas, a previsibilidade e a luta virtuosa por manter na actualidade política o objectivo de uma maior equidade social.
Em contraponto, os novos movimentos anti-sistema vivem ainda uma fase de afirmação, os seus líderes ainda não sofreram desgaste perante os apoiantes e as suas gentes têm as expectativas bem altas. A perspectiva é assim que exista margem para continuarem a crescer um pouco mais. Não nos enganemos. Desse crescimento, nada de inofensivo poderá resultar. O carácter anti-democrático da sua acção política e a infiltração de grupos nacionalistas radicais podem minar os alicerces do edifício que, com inúmeros defeitos, nos garantiu longos anos de paz e prosperidade. Seja porque encostam cada vez mais o PS à esquerda no contexto da confrontação de blocos, seja porque funcionam como um isco para o PSD, ávido de poder, se desviar dos seus princípios fundadores.
Por tudo isto, enquanto partido de protesto, substituir o PCP pelos Chegas deste novo mundo será um erro atroz. Todavia, continua a haver quem ostente comportamentos de cegueira anticomunista, julgando-se incólume numa análise de culpados. Muitos com costela democrata, mas vivendo também eles um anacronismo, numa reacção pavloviana, quase cospem no chão mal ouvem falar no PCP, sem cuidar de pensar de forma pragmática no balanço das vantagens e desvantagens daquele partido. Nos próximos tempos, poderemos avaliar como reagirão as suas glândulas salivares, quando, com a sua ajuda indirecta, o Chega se vier a converter no terceiro maior partido português e puder comprometer de forma séria a prossecução dos desideratos de uma social-democracia progressista como tem sido a nossa. Nessa altura, talvez lhes chegue mesmo a tosse e comprem uma cuspideira.