Regresso à canção de protesto e à memória de José Mário Branco
Falar do autor de Margem de Certa Maneira e Ser Solidário e dos exílios políticos será, em Grândola, encarar o futuro do presente que temos.
As siglas são um enigma. Quando se procura por uma, nunca se sabe o que se vai encontrar. Por exemplo: OCP. Quem for mais dado ao cinema, responderá logo: “Ah, já sei, era aquela empresa que criou o polícia-ciborgue no RoboCop do Paul Verhoeven!” É uma resposta possível, mas há outras. Em 2018, Andrew R. Kingston, um americano que vira o RoboCop na juventude e o tinha entre os seus eleitos, resolveu decalcar o nome usado no filme (OCP – Omni Consumer Products) e criar a Omni-Consumer Products Corporation, conhecida por Omnicorp ou… OCP. Mas há também uma OCP de distribuição de produtos farmacêuticos, outra de revestimentos, outra de contabilidade, outra ainda ligada às artes plásticas e à música, há uma OCP industrial sediada em Casablanca (Marrocos) com ramificações pelo globo, há um OCP como Organismo de Certificação de Pessoas e há duas OCP musicais: a conhecida sigla da Orquestra de Câmara Portuguesa; e o OCP, Observatório da Canção de Protesto, fundado em Grândola em 2015.
Pois é este último que agora anuncia novo Encontro da Canção de Protesto, de 17 a 20 de Setembro, desta vez dedicado a José Mário Branco (1942-2019) e à temática do exílio. Terá, como de costume, uma exposição (Emigração, exílio e canção de protesto), sessões testemunhais e de debate, música ao vivo (dia 18 com Sérgio Godinho e Assessores, e dia 19 com cinco membros do antigo GAC: Afonso Dias, António Duarte, Carlos Guerreiro, Tino Flores, João Lóio) e um colóquio de encerramento intitulado “Contra as ditaduras erguer a voz e cantar”. Neste, será exibido o documentário Les Printemps de L’ Exil, realizado por José Vieira, em 2009 (há uma edição em DVD, francesa), cruzando as histórias de três exilados políticos em Paris nos anos 1960: José Mário Branco, cantor e compositor; Vasco de Castro, desenhador e cartoonista; e Fernando Pereira Marques, militante da LUAR que viria mais tarde a ser dirigente do PS. No final do colóquio, haverá uma actuação do Coro da Casa da Achada – Centro Mário Dionísio.
Saudosismo museológico? De modo nenhum. A noção de música de protesto (de resistência, de luta, mas também de crítica social e política) tem atravessado décadas e regimes, ecoando nos mais diversos géneros musicais e continua hoje viva. Noutros modos, noutros nomes, noutras vozes, mas dando sempre conta de inquietudes e insatisfações latentes vertidas em música. Em Portugal, a veia contestatária ou crítica continua latente em muitos criadores de canções, mesmo que não se lhes aplique o abusivo selo de “cantores de intervenção”. E há canções assim feitas por nomes de novas gerações, como Tiago Bettencourt, Chullage, Filipe Sambado, Deolinda, A Naifa, Capicua, Valete, LBC, Rogério Charraz e outros. Por exemplo: o cantor e compositor Luís Varatojo (Peste & Sida, Despe e Siga, Linha da Frente, Fandango, A Naifa) tem vindo a lançar desde Fevereiro várias canções de um projecto intitulado Luta Livre. Começou com Política e continuou com Ninguém quer saber, Iniquidade, O problema é o sistema e Sushi era no Japão. O disco inteiro virá mais tarde, mas o tom está dado: é de crítica e combate.
E no mundo? Trump e Bolsonaro têm sido inspiradores. O primeiro já mereceu canções, entre muitos outros, de Bruce Springsteen, Green Day, Bad Religion ou David-Clayton Thomas, antigo vocalista dos Blood Sweat & Tears, cujo álbum mais recente é todo ele, a começar pelo título (Say Somethin’, de 2019), um somatório de canções de protesto, de Never again a The Circus.
A verdade é que as canções sobre Trump começaram em plena campanha presidencial de 2016, ainda antes de ele chegar à Casa Branca. Em 2017, a Rolling Stone escolheu e publicou 13 das melhores e o New Musical Express escolheu 16 em 2018, o ano em que deixou a edição em papel e passou a existir apenas online. E estas iam desde os Franz Ferdinand (Demagogue) a Eminem (Campaign speech), Gorillaz (Hallelujah money), Arcade Fire (I give you power), CocoRosie com Anohni (Smoke ‘em out) ou Father John Misty (Pure comedy). Já no Brasil, foi Chico César quem mais recentemente (e com maior eco) caricaturou o universo de Jair Bolsonaro, numa canção intitulada Bolsominions. Assim: “Bolsominions são demônios/ Que saíram do inferninho/ Direto pro culto para brincar de amigo oculto com satã num condomínio”.
Mas voltemos a Portugal. Não há muito tempo, atravessava o país um novo período conturbado, alguém perguntou a José Mário Branco porque não escrevia ele mais canções, quando tanta coisa exigia a sua voz crítica. Diz-se, citando de cor, que terá respondido: “Porque já as escrevi todas.” Resposta certeira. Percorrendo os seus discos, está lá tudo. Ou quase. E o que não estará, pelo que neles se ouve, imagina-se. O grau de elevada qualidade musical que aplicou às suas canções, mesmo às mais panfletárias, bem como a exigência posta nos arranjos e nas letras, estabeleceu um padrão que ele jamais aceitou rebaixar. E que permanece como marca sua, para lá da morte. Falar dele e dos exílios políticos será, em Grândola, encarar o futuro do presente que temos.