A editora Cotovia vai fechar as portas no final do ano

Fernanda Mira Barros, que nos últimos anos vinha tentando relançar a editora, anunciou esta segunda-feira que a Cotovia, fundada em 1988 por André Jorge, vai mesmo encerrar.

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Fernanda Mira Barros assumiu a missão de relançar a editora em 2017, após a morte do seu fundador, André Jorge Rui Gaudêncio

“Esta é a última presença da Cotovia na Feira do Livro de Lisboa. A editora fecha no final do ano.” Foi com esta curta declaração que Fernanda Mira Barros anunciou esta segunda-feira, na página de Facebook da Cotovia, que o projecto editorial criado por André Jorge chegou mesmo ao fim.

Na mensagem que deixou, e que esta tarde já tinha cerca de uma centena de comentários a lamentar a notícia, Mira Barros acrescentava que a Cotovia irá disponibilizar títulos descatalogados na Feira do Livro de Lisboa e lembrava ainda que a editora é representada, na feira do Porto, pela livraria Flâneur.  Mas não adiantava quaisquer explicações para a decisão agora tomada, e também declinou comentá-la ao PÚBLICO, explicando que optou pelo silêncio.

Parece provável, no entanto, que as razões sejam de ordem comercial. Numa conversa com o PÚBLICO em Março de 2017, quando regressou à Cotovia para tentar relançar a editora, após a morte de André Jorge, em Agosto do ano anterior, Fernanda Mira Barros já avisava: “Tenho o privilégio de poder abdicar de um salário, e estou a dar-me dois ou três anos para pôr isto bem, mas sei que é muito difícil viver no sector dos livros tal como ele é hoje, e não sou o André, não vou vender o património que herdei dos meus pais para sustentar a editora.”

O seu projecto, segundo então explicou, passava por tentar manter a reconhecida qualidade do catálogo, mas apostando na comunicação e nas redes sociais para tornar a editora mais visível e alargar o seu público. Uma estratégia que, nas difíceis condições que hoje enfrenta qualquer editora independente, e que a pandemia veio agravar, não terá surtido os resultados necessários. 

Acaba pois assim – formulação que evita tentadores jogos de palavras com o título do célebre romance de Harper Lee – um dos mais sérios e intransigentes trajectos editoriais portugueses das últimas décadas. Com cerca de 1500 títulos publicados, a Cotovia foi lançada em 1988 por André Jorge e pelo seu irmão, o poeta João Miguel Fernandes Jorge, que se desentenderiam pouco depois, ficando o primeiro a conduzir o barco sozinho. Nesse período inicial, uma das mais fortes imagens de marca da editora era a revista literária As Escadas Não Têm Degraus, com números em formato de livro, dirigida por João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães e António M. Feijó. E talvez nenhum outro título ilustre melhor a disponibilidade de André Jorge para investir em projectos de duvidoso retorno financeiro como o lançamento, em 1990, de um volume autónomo com os índices da poesia de Jorge de Sena.

André Jorge só publicava os livros de que ele próprio gostava, o que fez do catálogo da Cotovia um caso invulgar de coerência estética, que se reflectia também na sóbria elegância das capas e do grafismo. Se esta lógica editorial conquistou o respeito de autores e leitores e atraiu fidelidades que ainda hoje se mantêm, nem sempre produziu resultados comerciais igualmente compensadores. O que o editor aceitava com naturalidade. “À partida tenho a esperança de pagar custos, mas nem sempre acontece”, explicava em 2008 numa entrevista ao PÚBLICO.

Tal como se recusava a publicar livros de que não gostava, também não estava disposto a pactuar com situações que considerava injustas para assegurar a distribuição dos livros. Ficou conhecida no meio a decisão que a dada altura tomou de deixar de vender os seus livros nas lojas Bertrand. “Custa-me tanto pôr uma gravata como aturar um idiota que do alto da sua função tenta esmagar – ‘Este vem aqui porque precisa de vender, então vou impor as regras”, comentava na mesma entrevista.

“Tristíssima notícia”

Talvez o domínio em que o catálogo da Cotovia mais constitui um caso único no panorama editorial português seja o do teatro. Além de ter publicado traduções do melhor teatro mundial de todas as épocas, de Sófocles a Brecht e a autores internacionais contemporâneos, foi co-editando uma bem-sucedida colecção de livrinhos de teatro com a companhia Artistas Unidos, de Jorge Silva Melo, e tornou-se a casa de vários novos dramaturgos portugueses, como Abel Neves, Jacinto Lucas Pires ou José Maria Vieira Mendes.

Mas é também notável o conjunto de clássicos gregos e latinos que a Cotovia foi publicando e que inclui as traduções da Ilíada e da Odisseia por Frederico Lourenço, mas também muitas outras obras menos obviamente vendáveis, de autores como Petrónio, Tibulo ou Gaio Valério Catulo, para citar apenas alguns.

A literatura dos países africanos de expressão portuguesa e a literatura brasileira – à qual a editora dedicou mesmo a colecção Curso Breve de Literatura Brasileira, organizada por Abel Barros Baptista – são outros pontos fortes do catálogo da Cotovia, que em Fevereiro passado já deixara a sua loja física no Chiado e passara a vender apenas on-line.

A leitura das reacções, no Facebook da editora, ao anunciado encerramento da Cotovia mostra bem o apreço que muitos leitores mantinham pela chancela. “Queria agradecer em público pelo trabalho realizado pela editora ao longo das décadas. O catálogo da Cotovia a coloca entre as melhores editoras do mundo – pelo menos do meu mundo, que cada vez menos coincide com o mundo geral”, escreve o poeta e crítico literário brasileiro Eduardo Sterzi. “Tristíssima notícia do fim da melhor editora portuguesa”, lamenta o poeta José Oliveira Fernandes. “Fico muito triste com esta notícia; ainda na sexta-feira lá fui buscar a Eneida”, diz a artista plástica Adriana Molder. “Morro um bocado”, assegura José Pinto Carneiro, que em 1994 publicou na Cotovia O estranho caso da boazona que me entrou pelo escritório adentro, e que remata com um toque de humor: “Espero que não tenha sido por minha culpa...”

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