Uma verdadeira indignidade

Nos anos 1920-1960, o audiovisual europeu foi sendo posto ao serviço dos cidadãos. Em Portugal, as agremiações tomaram conta dele…

Foto
Informação da RTP alvo de críticas Goncalo Dias

É verdade que a maioria dos portugueses não vê diferenças. Mas há quem queira pensar ainda que a televisão pública tem algo de melhor do que as privadas. Embora a programação seja igualmente indigente. E, quando não o é, trata-se quase sempre de produções estrangeiras. Até porque a produção própria é rara.

Em matéria de informação, a situação é mesmo calamitosa. Até o apregoado telejornal da RTP 2 (que parece ter entrado em deriva) é criticável: as “peças” são as mesmas do primeiro canal, sem montagem e “voz off” diferentes. Os “comentadores”, incapazes de síntese, ocupam boa parte do tempo. “Especialistas” há que botam faladura semanalmente em rubricas cujo interesse é nalguns casos risível. E estes convidados são tratados por “tu” e dizem-lhes saloiamente que “é sempre um gosto” ouvi-los!…

Ao que parece, há uma “direção da informação” (género “exército mexicano”) à frente dos jornais e magazines que figuram nas grelhas dos diferentes canais da RTP. Ilusão: trata-se de facto de uma simples repartição de requisições de partidos, corporações e demais grupos de pressão.

Nesta repartição, o que é considerado “informação” são os comunicados e iniciativas das assessorias dos partidos políticos, ordens, sindicatos, associações profissionais, ligas, clubes de futebol e uma série de outras agremiações. Daí que os “repórteres” da casa sigam quotidianamente os líderes destas agremiações, recolhendo declarações que fazem urbi et orbi. Daí as “entrevistas” obrigatórias desses mesmos líderes, bastonários, presidentes e demais comandantes sobre assuntos em que manifestamente deveriam ter sido personalidades de indiscutível competência a pronunciar-se.

Nestes últimos meses, a chamada “Ordem dos Médicos” faz mesmo dessa repartição de requisições uma autêntica oficina de promoção das manobras mais diversas comandadas pela assessoria da dita “ordem” e do seu “bastonário”. Sem que os “repórteres” da RTP tenham de facto a preocupação de ir para o terreno, inquirir, investigar e verificar, recolher sons e imagens, montar cuidadosamente as “peças” e acrescentar em “voz off” o comentário adequado.

Telejornais e magazines são em boa parte fruto do que benevolentemente se poderia chamar um jornalismo preguiçoso. Uma prática que consiste antes do mais para a gente da RTP a pôr-se em evidência, mostrando-se, num exercício de exibicionismo egocêntrico bem pouco jornalístico. Possa o operador, sem arredar pé, procurar tirar benefício da câmara vídeo, alargando os ângulos de visão ou a profundidade do campo. E estendendo depois o micro ao “chefe” da agremiação que sugeriu a “peça” e que nem sempre tem algo de interessante a dizer.

Vista de fora, a informação na RTP dá o sentimento que os detentores da carteira de jornalista funcionam em autogestão (no pior sentido da palavra), em clãs, grupos e grupinhos mais ou menos autónomos que se estão borrifando para a hierarquia da redação e da instituição. Depois do conflito aberto e público que levou à demissão da anterior direção da informação, o que aconteceu aos autores da agitação interna? Nada! Não houve instância ou hierarquia capaz de tomar decisões que se impunham em termos de suspensão e mutação de pessoas e emissões.

É assim praticada uma informação de comunicação empresarial e de justiça popular, típica de um meio económica e socialmente fragilizado, marcado pela precaridade e largamente desconsiderado pela opinião pública. Caraterísticas a que não escapa o audiovisual privado. Só que este existe para ser um negócio rentável, favorecer o consumismo e intervir na evolução ideológica e política da sociedade. Enquanto a RTP tem teoricamente uma função de serviço público de cidadania. Por quanto tempo, os poderes legislativo e executivo vão continuar a deixar que, um e outro, funcionem em roda livre numa agitação constante e repetidos atentados à jovem democracia portuguesa? É certo que, mesmo em velhas democracias consolidadas, o poder político receia abordar a questão do estatuto dos média. Mais ainda num país, como Portugal, onde os mandatários públicos nacionais pouco frequentam os eleitores e precisam dos média para que os cidadãos não se esqueçam deles. Mas há urgência!…

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção