Primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe, demite-se por razões de saúde

A saúde do chefe do Governo piorou no último mês, com o agravamento da colite ulcerosa com que se debate há vários anos. “Peço desculpa do fundo do coração”, disse Abe, que deixa uma herança complexa.

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Shinzo Abe tem 65 anos e sofre de colite ulcerosa Reuters

O primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, o chefe de Governo com maior longevidade no cargo, renunciou devido a problemas de saúde, encerrando um período à frente da terceira maior economia do mundo em que tentou retomar o crescimento, reforçar a defesa e impulsionar o perfil do país no mercado global.

“Decidi que tenho de me demitir de primeiro-ministro por não continuar a ter a confiança de que posso continuar a desempenhar o cargo que me foi confiado pelo povo”, afirmou Abe, de 65 anos, numa conferência de imprensa. Preferiu afastar-se, para evitar um vazio de poder, num momento em que o país atravessa a crise do novo coronavírus.

Abe luta há anos contra a colite ulcerosa, uma doença intestinal inflamatória crónica em que o intestino grosso (cólon) fica inflamado e ulcerado (com perfuração ou erosão), com crises de diarreia com sangue, cólicas abdominais e febre, e em que o risco de sofrer de cancro aumenta a longo prazo. Duas visitas recentes ao hospital numa semana levantaram questões sobre se Abe poderia permanecer no cargo até ao final do seu mandato como líder do Partido Liberal Democrático (PLD) e, por extensão, como primeiro-ministro, em Setembro de 2021.

Na segunda-feira, Abe ultrapassou o recorde de mais anos à frente do Governo japonês, estabelecido pelo seu tio-avô Eisaku Sato há meio século.

À medida que a notícia se espalhou, o índice Nikkei caiu 2,12% para 22.717,02, enquanto o Topix caiu 1,00% para 1.599,70. 

O Japão não sofreu o aumento explosivo de casos de covid-19 vistos em outros países, mas Abe chamou a atenção por uma resposta inicial desajeitada e o que os críticos viram como falta de liderança à medida que as infecções se espalharam.

Tem ainda o problema não resolvido dos Jogos Olímpicos de Tóquio, que deviam ter-se realizado este ano, e foram suspensos - em princípio até 2021. O Governo japonês está a tentar comprar quatro vezes mais doses de vacinas do que sua população (521 milhões de doses, de cinco vacinas diferentes, para uma população de 126 milhões). A Reuters diz que o executivo não esclareceu se esta compra avultada terá a ver com o grande número de atletas e membros de delegações esperado com os Jogos Olímpicos.

No segundo trimestre, o Japão foi atingido pela maior queda económica já registada, com a pandemia a esvaziar centros comerciais e a esmagar a procura por automóveis, reforçando os argumentos a favor de uma acção política mais ousada para evitar uma recessão mais profunda.

Nomes que se seguem

A renúncia irá desencadear uma corrida pela liderança no PLD, o vencedor da qual deve ser formalmente eleito no Parlamento. O novo líder do partido manterá o cargo até ao fim do mandato de Abe, que não indicou qualquer nome para lhe suceder.

Uma sondagem citada pelo jornal em língua inglesa Japan Times apontava alguns nomes prováveis para a corrida à sucessão, como Shigeru Ishiba, que perdeu para Shinzo Abe a competição pela liderança do partido em 2012, e hoje é secretário-geral do PLD, embora seja um crítico de Abe. Foi ministro da Defesa e é um especialista em temas militares, sendo apontado como o mais provável líder do partido por 23,3% dos inquiridos na sondagem da agência noticiosa Kyodo.

Em segundo lugar nesta sondagem surge o ministro do Ambiente, o jovem Shinjiro Koizumi, herdeiro de uma dinastia política, como é comum no Japão, mas que se tem distinguido por gestos que agradam a uma geração mais jovem, como tirar a licença de paternidade quando nasceu o seu primeiro filho. Esta sondagem dá-lhe 8,4%.

A inquérito de opinião dá ainda 7,9% ao ministro da Defesa, Taro Kono e 2,8% a Fumio Kishida, um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Shinzo Abe e que esteve também no Governo de  Yasuo Fukuda. O Japan Times relatava, no entanto, dúvidas crescentes sobre a capacidade de Kishida para substituir Abe. “Kishida é para tempos de paz, não para tempos complicados”, terá dito a um colega Taro Aso, ministro das Finanças e vice-primeiro-ministro.

Uma possibilidade seria avançar com o nome de Yoshihide Suga, o porta-voz do Governo, para a liderança do partido. No entanto, a relação de Shinzo Abe com o que foi o seu mais próximo colaborador já não é tão próxima como foi no início da sua governação.

Espera-se que, seja quem for que ganhe a votação no partido, provavelmente mantenha as políticas de Abe, que beneficiaram as grandes empresas e os investidores, e permitiram ao Japão seguir em frente após a dupla catástrofe do acidente nuclear da central de Fukushima e do tsunami de 2011. Mas é pouco provável que repita a longevidade política de Abe.

“O panorama geral permanece intacto. Em termos de política económica e fiscal, o foco permanece na reflação”, ou seja, nos estímulos fiscais e monetários à economia, disse Jesper Koll, consultor sénior do gestor de activos WisdomTree Investments, ao New York Times. “Mas a questão da longevidade no poder será um desafio.”

A oposição não tem um líder que se lhe oponha. Dois partidos anunciaram recentemente a fusão - o Partido Democrático Constitucional e o Partido Democrático Popular -, mas, não têm apoio suficiente para contestar a liderança do PLD de Abe.

A renúncia de Abe também ocorre num ambiente geopolítico incerto, incluindo uma intensificação do confronto entre os Estados Unidos e a China e antes da eleição presidencial nos EUA, em Novembro.

Queda no apoio

O conservador Abe voltou como primeiro-ministro para um raro segundo mandato em Dezembro de 2012, prometendo reanimar o crescimento económico. Também se comprometeu a fortalecer as defesas do Japão e pretendia alterar a Constituição pacifista do país. Mas, apesar de conquistar a maioria necessária para mudar a lei fundamental, nunca teve apoio para o fazer.

Mas, numa mudança histórica, em 2014, o seu Governo reinterpretou a Constituição para permitir que as tropas japonesas lutassem no estrangeiro pela primeira vez desde a II Guerra Mundial. Aumentou os gastos com os militares após anos de declínio e expandiu a capacidade de projectar poder no exterior.

Um ano depois, o Japão adoptou leis que eliminam a proibição de exercer o direito de autodefesa colectiva ou de defender um país amigo sob ataque.

Reconheceu que o Japão usou escravas sexuais de outros países asiáticos na II Guerra – as chamadas “mulheres de conforto” – e negociou o pagamento de algumas indemnizações, que não foram consideradas suficientes. Mas também assumiu a posição de que o Japão não pode passar o tempo todo a pedir desculpas pelo que aconteceu na II Guerra – embora os seus vizinhos continuem a exigir-lhe que o faça. As visitas anuais ao santuário xintoísta de Yasukuni, local onde Tóquio venera os que morreram em conflito, mas também 14 dirigentes condenados por crimes de guerra em 1945, não ajudaram.

Mas os mandatos de Abe foram marcados por vários escândalos, como o da compra de votos nas eleições para o Senado de 2019 do ex-ministro da Justiça Katsuyuki Kawai. Mas o Governo sempre sobreviveu. A resposta à pandemia do novo coronavírus é que fez com que a sua aprovação caísse para um dos níveis mais baixos nos seus quase oito anos no cargo.

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