Turismo para todos, até para os que cá vivem

Fomos todos condescendentes na avalanche de excursionistas low-cost por ser economicamente proveitosa, embora ambientalmente insustentável e humanamente penosa. Também nós embarcámos nestas fast trips, de duas horas de voo sem malas de porão, meia dúzia de selfies e uma colecção de ímanes no frigorífico

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Reuters/MANUEL SILVESTRI

Já não me lembrava de cirandar pela baixa como se estivesse realmente na minha cidade e longe de uma qualquer capital europeia atolada de lojas de souvenirs, B&B de camas empilhadas e autocarros hop-on hop-off alinhados à saída dos museus. O olhar largo permite-me ver, com a plenitude que merece, o rendilhar da calçada portuguesa e as ruelas sinuosas sem ter de pedir licença a cada cinco metros. Talvez, em breve, consiga até admirar azulejos sem tapumes e o zumbido dos tuk-tuk seja abafado pelas conversas apressadas dos pardais, das pombas e dos piscos.

Francisco Sena Santos falava há dias, na rádio, sobre a oportunidade de reequacionarmos o turismo, a forma e a quantidade do que recebemos. Largava a questão: “Será que as cidades estão preparadas para se reinventarem, conciliando o equilíbrio de bem-estar para o turista e para o residente?” Em forma de aviso comentava que o centro histórico de Veneza tem apenas 50 mil residentes, que é­ – digo eu – mais ou menos o número de residentes de Fafe, mas que recebia, antes da pandemia, cerca de 30 milhões de visitantes ao ano – continuo, ainda –, três vezes a nossa população, empoleirada em ilhotas, canais e pontes.

Um dos maiores “parques de diversões do mundo”, acrescentou. Uma descrição impiedosa, que nos corta um pedaço da alma, sobre um cenário que se pinta de romântico, pitoresco, numa paleta de cores pastel. Longe desta imagem poética era apenas um sítio doente, lotado, sufocado pela sua própria beleza. Embora a voz aveludada de Sena tornasse tudo mais ameno, não pude deixar de perceber como estivemos perto desta erosão superlativa dos que nos visitavam.

Fomos todos condescendentes na avalanche de excursionistas low-cost por ser economicamente proveitosa, embora ambientalmente insustentável e humanamente penosa. Também nós embarcámos nestas fast trips, de duas horas de voo sem malas de porão, meia dúzia de selfies e uma colecção de ímanes no frigorífico. Aceitámos hotéis em catadupa em vez de lojas centenárias que guardavam as nossas memórias. Lavamos as fachadas dos prédios devolutos com a mesma velocidade com que lhes varremos os moradores. Desfizemo-nos de património como sobrinhos sôfregos na partilha de uma vasta herança. Acreditamos fielmente que foi o melhor que nos podia ter acontecido — e, até certo ponto, até certo dia, foi.

As cidades renovaram-se, floresceram em emprego e riqueza, mas esquecemo-nos de zelar pelos nossos, pelos que sempre aqui viveram… Os estendais esvaziaram-se, os gerânios secaram, já não há vizinhas nos beirais, já não há pessoas que se conhecem pelo nome e o ar perfumado a bacalhau na brasa. É a este modelo de turismo a que queremos voltar? O que devasta a nossa essência em troca de gente que passa? Que nos coloca à margem da nossa própria terra? Em que de protagonistas passamos a pagar bilhete para viver o cenário como figurantes de segunda?

Na realidade, também ninguém quer “Venezas” vazias, uma torre Eiffel para três ou ouvir o seu eco no Taj-Mahal. Cada pedaço do mundo só é verdadeiramente bonito com os sorrisos das pessoas que o preenchem. De outra forma, os lugares são apenas… lugares.

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