A caixa de tintas e pincéis
Segundo o que se vai relatando, as coisas funcionam com total transparência na bondosa comissão criada pelo Governo para comprar arte contemporânea para o Estado: amigo escolhe amigo, que por sua vez escolhe amigo, tudo em perfeita harmonia.
Na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, chamaram-se a eles próprios homeostéticos. Era notório que queriam que reparassem neles, pois iriam ser todos grandes artistas. Eu, que vim estudar para Lisboa em 1982, não pude deixar de reparar; sobretudo num deles, sisudo como um amanuense, que andava sempre com uma caixa daquelas que os pintores antes usavam para guardar tintas e pincéis, e que então já ninguém usava.
Era a sua imagem de marca e, supunha-se, a estocada final no tardo-romantismo, plena de ironia juvenil, que, embora tola, se aceita naquelas idades. “O homem da caixa”, como por brincadeira lhe chamávamos — eu e as mais três ou quatro pessoas com quem me dava —, tinha também um ar vagamente premonitório de qualquer coisa que não conseguíamos vislumbrar. Chegámos à conclusão, rindo-nos, de que a resolução do enigma estaria com toda a certeza no interior daquela caixa.
Trinta ou 40 anos depois, solicitando uma assinatura, recebo no meu e-mail uma carta/manifesto, O estado da arte em Portugal, tendo por principais signatários alguns dos mesmos homeostéticos, agora substancialmente mais velhos — repare-se no termo “manifesto”, com todo o peso nostálgico que carrega das grandes aspirações insatisfeitas. A minha justificação para não assinar foi a seguinte e data do dia 24 de Setembro de 2018: “Acho a carta/manifesto um chorrilho de lugares-comuns palavroso, muito mal escrita e pior argumentada.
A citação inicial é de fugir e pretensiosa (lá mais para a frente temos o ‘sub-Eliot Pessoa’, percebendo-se logo que nunca leram o primeiro e não entendem as razões do lento reconhecimento do segundo) e, no final da carta, não poderia faltar a estafada adjectivação ‘tardo-romântico’, a cereja no cimo do péssimo bolo argumentativo. Uma carta destas, se fosse verdadeiramente desinteressada e preocupada, não precisaria de mais de dez linhas e muito menos de ser um manifesto.
Além disso, o próprio ressentimento dos autores da carta/manifesto é tão evidente que inquina tudo: podiam ao menos ter a franqueza de reconhecer esse ressentimento primeiro neles próprios e não atribuí-lo indiscriminadamente a terceiros, fazendo-se passar arrogantemente por seus defensores.”
Embora eu não a tenha assinado, é evidente que esta carta/manifesto que teve como destinatário o primeiro-ministro, instando-o a criar um fundo estatal para aquisições de arte contemporânea, acabou por dar os seus frutos, sobretudo para os que a redigiram, um hábito que se percebe. E o enigma também se desfez: a velha caixa de tintas e pincéis estava destinada a transportar dinheiro para os necessitados artistas do futuro, através do assento que o seu proprietário, Pedro Portugal, acaba de conquistar, com inteira justiça, na entretanto criada comissão de compras de obras de arte para o Estado português.
Seria precipitado dizer que se perdeu um grande artista, mas, seguramente, Portugal ganhou um homem que parece santo. Segundo o que se vai relatando, as coisas funcionam com total transparência na bondosa comissão: amigo escolhe amigo, que por sua vez escolhe amigo, tudo em perfeita harmonia, evitando desta forma os feios ressentimentos dos outros — que eles, os homeostéticos, já se sabe que não padecem dessa fraqueza de carácter — denunciados na carta/manifesto.
E assim, o homeostético do passado deu lugar ao homoagradecido do presente, com o bónus adicional de ir às compras. Nesta nobre função se vão revezando. Já foi um, o engraçadíssimo ex-candidato à Presidência da República Manuel João Vieira, coube agora a vez a este, o da caixa. Brevemente, outro será.
Não concebo como alguém com o mínimo de sentido do ridículo, para já não falar de sentido de serviço público, aceita fazer parte de uma comissão destas e o Estado português a patrocina.