O filme que vai salvar o cinema está a chegar – mas a crítica não o traz em ombros
Tenet, de Christopher Nolan, estreia-se na próxima quarta-feira em vários países, Portugal incluído. A indústria confia que será a vacina de que as bilheteiras estão desesperadamente a precisar para recuperar a saúde perdida, mas as primeiras reacções mostram algum desapontamento.
“Box office poison”, dizia-se na Hollywood da década de 30 dos actores cujos salários avantajados – Greta Garbo, Marlene Dietrich, Joan Crawford ou Katharine Hepburn, mas também Fred Astaire… – não se traduziam (pelo contrário) em receitas de bilheteira propriamente vistosas. Pois bem, nenhum deles terá envenenado as bilheteiras de forma tão avassaladora como o novo coronavírus, que desde Março mantém fechadas milhares e milhares de salas de cinema em todo o mundo e que, mesmo em países onde o desconfinamento já vai avançado, quebrou drasticamente os números de espectadores.
Depois de meses de penúria, Tenet, o filme que após uma série de avanços e recuos se estreia na próxima quarta-feira em mais de 70 países, Portugal incluído, parece ser a vacina de que a indústria desesperadamente precisa para recuperar de uma crise de proporções históricas. Christopher Nolan, o realizador, é tudo menos “box office poison”: dois dos seus filmes da trilogia Cavaleiro das Trevas (O Cavaleiro das Trevas, de 2008, e O Cavaleiro das Trevas Renasce, de 2012) superaram a fasquia dos mil milhões de dólares de receitas brutas e A Origem, que em 2010 consolidou o culto iniciado uma década antes com Memento, não ficou longe dessa proeza. Por cá, foi aliás o terceiro filme mais visto do passado fim-de-semana, segundo dados do Instituto do Cinema e do Audiovisual: incluído, juntamente com Dunkirk e Interstellar, na operação especial Christopher Nolan montada pela Warner Bros. Pictures para celebrar os seus dez anos e alimentar a expectativa messiânica em torno do novo Tenet, fez 2413 espectadores em quatro dias. Dunkirk e Interstellar haviam já sido, respectivamente, o 12.º e o 14.º mais concorridos dos dois primeiros fins-de-semana de Julho.
Quanto a Tenet, as primeiras críticas ao filme, exibido em Londres para algumas publicações seleccionadas, parecem contrariar a ideia de que o filme estava condenado a chegar em ombros às salas de cinema que é suposto salvar. No diário britânico The Guardian, Catherine Shoard, que apenas lhe dá duas estrelas, chama-lhe “um fiasco palindrómico”, por referência ao palíndromo que lhe dá título (a palavra “tenet”, que se pode traduzir por “dogma”, lê-se da mesma forma para a esquerda e para a direita), lamentando que este não seja “o blockbuster fabuloso” para o qual “o mundo está mais do que pronto”. E sentencia: “Tenet não é um filme que valha o nervosismo de uma viagem ao grande ecrã, por mais seguro que seja. Não estou sequer certa de que daqui a cinco anos valha a pena ficar-se acordado para o apanhar na televisão. Dizê-lo é triste, talvez até herético, mas, para que as audiências realmente abandonassem as suas salas de estar a longo prazo, teria sido melhor que a primeira cenoura não deixasse este mau sabor.”
O tom é semelhante no Los Angeles Times, onde Jonathan Romney escreve que o novo filme de Nolan “não é a absoluta maravilha sui generis” que os espectadores talvez esperem, apenas “uma aventura de espionagem com uma coluna vertebral de ficção científica” gerida com “o intuito frivolamente perverso de embasbacar”. No Deadline, Anna Smith admite que Tenet não é imperdível, enquanto Mike McCahill, do IndieWire, classifica o filme, ao qual dá uma estrela e meia, como “uma desilusão sem sentido de humor”, que mostra o realizador “mais preso do que nunca nas suas próprias maquinações”.
Tal como nos anteriores quebra-cabeças que fizeram a fama de Nolan, o enredo deste filme é descrito como complexo e artificioso, mas aqui a toca de coelho parece mesmo não ter fundo, segundo Clarisse Loughrey, do britânico The Independent: “Se o apelo dos filmes de Nolan normalmente resulta de ver todas as peças a encaixarem-se perfeitamente no seu lugar, com a última imagem a trazer um sentido de ordem à existência, [aqui] o realizador viu-se crescentemente atraído pelo caos.” E Leslie Felperin, da Hollywood Reporter, parece subscrever a ideia de que Tenet exacerba a atracção do cineasta pela charada impossível: “Vi o filme duas vezes para escrever esta crítica e continuo muito confusa acerca do que é suposto estar a acontecer e porquê (…). É um filme gélido e cerebral – fácil de admirar, especialmente por ser tão rico em audácia e originalidade, mas quase impossível de amar, dada a sua falta de humanidade.”
Um “cálice sagrado”
Mas há também quem tenha saído de barriga cheia deste filme de 200 milhões de dólares (cerca de 170 milhões de euros), o primeiro blockbuster de grande orçamento a estrear-se no pós-pandemia. O fardo de ter de salvar a indústria, diz Guy Lodge, da Variety, transformou Tenet numa espécie de “cálice sagrado” – quando é “apenas um filme”, “um filme grande, ostensivamente bonito e grandiosamente agradável que confortará audiências há muito esfomeadas de espectáculo escapista à escala IMAX” e de “entretenimento puro e duro da velha e da nova escolha”. Também Will Gompertz, da BBC, que lhe dá quatro estrelas, saiu do filme com “o pulso acelerado e a cabeça à roda”, comparando Nolan a Ridley Scott e Stanley Kubrick na capacidade de combinar “imaginação vívida” e “espectacularidade” em épicos de acção em torno de “ideias complexas”.
Se há figura tutelar que paira sobre o “Protagonista” (John David Washington) de Tenet, porém, é a do agente secreto 007, como apontou a crítica do New York Times. O operacional da CIA aqui chamado a auxiliar a misteriosa organização de nome Tenet num cenário pré-apocalíptico em que, hélas, o tempo é elástico, é “basicamente James Bond, para a frente e para trás”, escreve Jessica Kiang, para logo concluir que o filme de Nolan é “o tipo de espectáculo esmagadoramente caro e esplendorosamente vazio que é difícil de imaginar a acontecer de novo no futuro mais próximo”. Diante da pandemia que lhe caiu em cima, valerá sobretudo como “o fascinante testemunho de uma civilização inconsciente dos perigos que a espreitavam ao virar da esquina”.
Como entretenimento, diz ainda Kiang, Tenet “cumpre todas as expectativas, menos a expectativa de que as excederia”. Como vacina, resta saber se estará à altura de toda a fé que a indústria nele depositou. Filmes anteriores de Nolan como a A Origem, Interstellar ou Dunkirk, lembra o New York Times, salvaram “Verões, reputações, estúdios”, tal como a sua trilogia batmaniana “salvou a parceria entre a Warner Bros. e a DC Comics”. Se salvará o cinema enquanto espectáculo de massas e experiência irredutível ao pequeno ecrã doméstico é algo que começará a perceber-se a partir de quarta-feira – e, melhor ainda, a 3 de Setembro, quando o filme fizer a sua estreia nos Estados Unidos, o mercado de referência, onde grandes cadeias como a AMC e a Regal só reabriram as suas salas este fim-de-semana.
Nesse tabuleiro, Portugal é uma peça irrelevante, mas também por cá Tenet pode ser o filme da viragem. Embora o volume de público nas salas venha a crescer consistentemente desde 1 de Junho, altura em que os cinemas tiveram permissão para reabrir, os 62.267 espectadores da última semana estão ainda muitíssimo longe dos 306.458 da melhor semana do ano (2 a 8 de Janeiro) e mesmo dos 156.113 da última semana antes da declaração do estado de emergência em Portugal (5 a 11 de Março) – quando ir ao cinema já parecia uma aventura só para os mais duros.