As linhas com que nos cosemos
No dia do confronto com a pergunta “quem sou?”, à qual jamais alguém escapará, olhem para as vossas estantes (ou para a lista do cartão da biblioteca), relembrem os ombros daqueles sobre os quais estamos sempre a construir-nos.
A Boa Feminista dedicou-se nos últimos dias a arrumar a biblioteca. Mas, antes de mais, vamos lá pôr tudo em pratos limpos. Não se trata bem de uma biblioteca (casas com 60 metros quadrados não têm bibliotecas), mas antes uma parede transformada em estante onde se vão amontoar os poucos milhares de livros acumulados ao longo de algumas décadas (todo o pecúlio que receberás da tua mãe, minha filha, por isso sê sensata quando chegar a hora de escolheres uma profissão…).
Rearranjar uma biblioteca e arrumá-la no contexto de outra vida (A Boa Feminista é como os gatos, tem muitas vidas) é algo que apenas se compara a uma sessão no psiquiatra (fiz isso uma vez, por isso sim, tenho termo de comparação). É mais ou menos assim: uma entrada tímida e envergonhada, olhares que se evitam (sim, os livros olham-nos com descaramento, e às vezes só conseguimos mesmo é fugir deles a sete pés), umas primeiras palavras entrecortadas, seguidas de alguns soluços e, inevitavelmente, corre um chorrilho de lágrimas e saltam lenços de papel de uma cartola como fazem os ilusionistas!
Da mesma forma, esperamos sair do encontro com os nossos livros com uma solução milagrosa. Mas isso nem os livros, nem os psiquiatras… O reencontro com uma série de volumes que vão ficando mais ou menos a flutuar numa estante traz sempre à memória mais do que algumas frases, versos, ideias ou imagens. É o mesmo que percorrer novamente uma vida inteira, lembrar as bifurcações, as poças de lama que não conseguimos evitar pisar, as decisões — boas e más —, os encontros — bons e maus —, todos os sítios por onde tivemos que passar até ao sítio onde nos encontramos.
É o mesmo que ouvir os velhos sábios que um dia foram jovens e nem sempre tão sábios; é também perceber que há ainda espaço naquela parede, ou na fila da frente, para outros mais jovens, ou simplesmente desconhecidos, e de vozes mais límpidas, porque mais apropriadas ao momento (estes são as ausências, os que ainda não encontrámos e nos fazem ansiar pelo futuro). Mas dizia eu, pelo caminho cruzámo-nos com tantas vozes que nos acompanharam, que nos fizeram ir em frente, que nos fazem ficar ainda por aqui e a procurar este divã e não outro qualquer, certamente que estamos perante algo de extremamente valioso.
No dia do confronto com a pergunta “quem sou?”, à qual jamais alguém escapará, ou se sentirem o assomo de qualquer tipo de crise existencial, olhem para as vossas estantes (ou para a lista do cartão da biblioteca), relembrem os ombros daqueles sobre os quais estamos sempre a construir-nos. Por aqui são tantas vidas que nos sustentam, tantas mulheres, Tanta Gente, Mariana (Maria Judite de Carvalho), tanta gente…
Deste reencontro d’A Boa Feminista com a sua biblioteca irá emergir certamente uma autobiografia inventada, tal qual a história inventada por uma das muitas vozes cujas linhas cosem este meu feminismo do quotidiano (evoco Hatherly). E, enfim, penso se este feminismo que precisamos encontrar é o tal feminismo das pequenas coisas, ou antes um feminismo de costuras — costura manual, claro, difícil, imperfeita, dada a rasgões, a buracos, à união desengonçada e desencontrada de farrapos que, apesar de tudo, se unem numa composição extremamente harmoniosa, e empoderadora.