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A arquitectura: a boa, a má e a simplificada (e a delicada)

Na próxima proposta, no próximo concurso, na próxima especulação, prestem-se os arquitectos a comunicar uma arquitectura visceral e apaixonada, cativante e sedutora.

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Quando um padeiro faz um alimento menos conseguido, facilmente recorremos a uma adjectivação negativa: comemos um mau pão. A arquitectura, quando inferior, teve até então a capacidade de — ao contrário da padaria – caracterizar-se saindo de si. Na presença de uma má obra, facilmente descomplicávamos a tese de Campo Baeza: isto não é arquitectura, é, afinal, construção. Mas não é da adjectivação elogiosa do bom pão e boa arquitectura que precisamos de falar.

Com uma construção hoje (quase) exclusivamente manejada por arquitectos, temos agora que imitar a padaria e qualificar a nossa prática, em gesto de contrição corporativa. Se é boa arquitectura, elogiamos o virtuosismo autoral. Se é má, culpamos um obstinado cliente ou complexas conjunturas, de forma a jamais comprometermos a linhagem de conhecimento herdado. Mas agora vamos ter a pandemia e a (outra) eventual crise como desculpa oficial para não nos libertarmos do (nosso) nefasto processo de simplificação.

O final do século trouxe até nós um genuíno minimalismo como uma das vias de saída de um esgotado pós-modernismo freestyle, conivente com os dois processos em aceleração à época (e ainda), o liberalismo económico e o individualismo. O minimalismo era então um estilo de imediata apreensão pelo cliente, sem teoria, copiável, capaz de satisfazer à primeira vista os gostos mais frugais.

Nas primeiras décadas deste século, por cá, o cliente tornou-se, surpreendentemente, no principal proponente deste economicista estilo popular de ultra depuração do regionalismo crítico de Frampton. E nós, arquitectos, fomos indo atrás. Esta arquitectura simplificante tocava vários pontos que nos interessavam: a depuração visual e a redução dos elementos aconchegavam-nos a um certo neo-racionalismo de Souto Moura; uma generosa austeridade vernacular aproximava-nos do neo-realismo de Vítor Figueiredo, numa espécie de continuidade do nacional estilo “chão” enunciado por Kubler; o branco-puro das paredes ligava-nos, de alguma forma, à poética de Álvaro Siza, na esperança que uma outra economia nos permitisse algum rasgo de genial encantamento.

Mas se o imaginário nos catapultava para um sublime virtuosismo, a prática revelou-se modesta e desajustada das nossas ambições. A tentativa poética esterilizou-se; a proposta espacial obrigou, em alternativa, a um maximalismo do espaço sovinamente espremido; o minimalismo gráfico ocultava, sim, a carência no detalhe. Contudo, no caso português, por mestria e alguma sorte, esta simplificação seca e pobre do seu referente conseguiu recusar-se militantemente à inferioridade. E a culpa é da habilidade dos arquitectos em dominar tal coisa como o espaço, mesmo em regime de poupança de meios e de gostos espartanos. Sem recurso a artifícios, esta arquitectura que se tenta cumprir na velha gramática da proporção, da escala e da relação com as proximidades, conseguiu, pelo menos  inversamente ao pão  escapar-se à adjectivação negativa e encontrar-se num parco, mas significativo sufixo: arquitectura simplificada.

Mas se os estilos e os movimentos se esgotam, já é tempo de começarmos a sacudir este falso neo-minimalismo de conjuntura para uma outra coisa mais respeitosa para a disciplina. Apesar de resolver alguns dos problemas  dos nossos e os da poupança  é uma arquitectura que nada acrescenta e muito contribuiu para uma nociva leitura de tarefa da economia da nossa actividade. E por onde começar? Na próxima proposta, no próximo concurso, na próxima especulação, prestem-se os arquitectos a comunicar uma arquitectura visceral e apaixonada, cativante e sedutora. Já que tão bem ilustrámos ao cliente as virtudes do “caixote”, com tudo o que temos agora à nossa disposição, ensinemo-lo a ver uma arquitectura para além do bolso.

Temos ainda uma outra sorte da nossa perícia. No património, à custa da parcimónia, os arquitectos são delicados. Delicados demais. Antes delicadeza, porque a arquitectura é, afinal de contas, um serviço. Um serviço que prestamos à própria arquitectura (e só depois ao cliente). Mas ainda há tantos arquitectos a quererem fazer, só, construção.

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