O oásis da vacina para a covid-19 pode ser uma inesperada miragem
O mais preocupante do método russo é a fase 3. Normalmente, exige anos para ser concluída, dado que é fulcral administrá-la ao máximo de pessoas possível e em países com R0 elevado. É necessário que as pessoas imunizadas sejam expostas naturalmente ao vírus, logo é necessário escolher um meio de teste em que o vírus se transmita facilmente e em que este esteja em contexto social.
Perante a euforia mundial com a possibilidade de uma vacina já em Setembro ou Outubro, parece-me imperativo navegar a corrente de exaltação dos média e do sector político. Neste momento, mais que tudo, é importante ouvir a ciência e as instituições responsáveis pela saúde pública global.
De facto, quando falamos de imunização à covid-19, existem duas formas de a conseguir: depois do encontro com a doença e de forma natural, ou por imunização com vacina. Um dos problemas é que este último tipo de imunização é mais fraco. Isto relaciona-se, primordialmente, com a forma de administração da vacina e com o teor de infecção da doença. Sendo administrada de forma intramuscular, os anticorpos formados depois do combate ao invasor patogénico, embora se encontrem a circular na corrente sanguínea, chegam muito dificilmente às mucosas respiratórias, onde os vírus respiratórios atacam. Assim, a importância da vacina não passará por impedir o vírus de atingir os pulmões e membranas, mas sim prevenir e impedir casos de pneumonia viral aguda, sendo principalmente esses os casos fatais.
Outra das dificuldades será a sua eficácia, podendo esta ser reduzida. Será parecida com a da gripe, sendo que as guidelines que a FDA publicou a 30 de Junho admitem que serão aprovadas vacinas só com 50% de eficácia comprovada a combater o vírus. Anthony Fauci, director do Instituto Americano de Alergias e Doenças Infecciosas, disse que “seria maravilhoso” atingir os 75%.
Na terça-feira passada foi anunciado pelo Governo russo que tinham registado a primeira vacina para tratamento do novo coronavírus, de nome Sputnik V. Contudo, este anúncio deixa muitas dúvidas sobre o processo de desenvolvimento da mesma. Segundo as guidelines da Organização Mundial de Saúde (OMS) para o desenvolvimento de vacinas, este processo é composto por três fases fundamentais: uma fase 1, onde poucos indivíduos recebem a vacina; seguida da fase 2, onde é administrada de dezenas a algumas centenas de sujeitos; culminando na fase 3, sendo doseada a dezenas de milhares de voluntários. No caso da vacina russa, entre a fase 1 e a fase 2 apenas 76 pessoas foram imunizadas, sendo metade destas militares russos.
O mais preocupante do método russo é a fase 3. Normalmente, exige anos para ser concluída, dado que é fulcral administrá-la ao máximo de pessoas possível e em países com R0 elevado. É necessário que as pessoas imunizadas sejam expostas naturalmente ao vírus, logo é necessário escolher um meio de teste em que o vírus se transmita facilmente e em que este esteja em contexto social.
A pior jogada política e institucional que se poderá cometer com este assunto tão delicado é alguma das agências mundiais regulatórias do medicamento aprovar cedo demais uma vacina. Se a fase 3 não for conduzida com eficácia e responsabilidade, o aparecimento de casos de efeitos secundários depois da comercialização provocará uma perda de confiança total em qualquer vacina que possa vir a ser aprovada, mesmo que mais tarde. O cálculo da percentagem da população que precisa de ser imunizada para se atingir imunidade de grupo depende directamente da presunção de que a generalidade das pessoas quererá receber a vacina. Quando esta suposição falha, o valor e importância da mesma para a mitigação a longo prazo do vírus é automaticamente posta de lado.
Pensando mais amplamente, poderá colocar em causa todo o trabalho de erradicação de doenças à escala global por imunização, como é o caso do sarampo e tuberculose. Neste momento, segundo a CNN, um terço dos americanos não querem vir a ser vacinados para a covid-19, mesmo que a vacina seja grátis e facilmente disponível. Corremos o risco de ao perseguir um oásis longínquo, com a pressa de nos prepararmos, depararmo-nos com uma miragem desoladora, acabando por enfraquecer ainda mais o esforço global de combate a pandemias, actuais e futuras, e dando força ao movimento anti-vacina.