Carta aos que desafiam o vírus como quem desafia o mar
É importante que, nesta tempestade, nos aguentemos à tona, segurando o leme e apontando-o ao único porto seguro: o da precaução, do cumprimento das regras, o da preocupação e respeito para com os outros que deixamos em casa.
Caxinas e Poça da Barca, lugares que formam uma das maiores comunidades piscatórias do país, enfiados numa faixa de menos de dois quilómetros quadrados entre Vila do Conde, a que pertencem, e a Póvoa de Varzim, para onde se prolongam, tinham tudo para ser notícia nesta época estranha de pandemia em que vivemos. Que, numa analogia com a nossa história trágico-marítima, me faz lembrar os desastres de 1892 e 1947, nos quais mais de 250 pescadores morreram após alterações repentinas num mar que prometia pesca farta. Era assim também o país, antes de Março.
Quando isto começou, os pescadores confessavam-me o medo de terem episódios de contágio a bordo dos barcos, onde não há barreiras de acrílico no convés e faltam outros equipamentos de protecção compatíveis com o trabalho braçal, mano a mano, feito de corpos solidários num esforço comum, e nada dado a afastamentos físicos. Mas, apesar destes condicionalismos, a vaga da covid-19 pouco se fez a esta praia e eles lá foram pescando, e vendendo como podiam, depois de um primeiro momento em que até a clientela se escondera, como um polvo, debaixo das pedras.
Depois, era o desafio do afastamento social, em terra. Durante meses as minhas filhas não viram os avós, gente desta gente que se fez no mar, e a quem isso da distância social é coisa para respeitar apenas quando há zangas profundas, dessas que apartam amigos e famílias para a vida. Estar junto está no nosso modo de ser, e sei bem o que terá custado, a boa parte da comunidade, a separação física, tornada social entre aqueles que não têm remos para navegar na internet e se viram enredados num dia-a-dia empobrecido, sem os dois dedos de conversa, as mãos, que nos afagam o coração.
Quando o país já se refugiara em casa, por aqui ainda se procurava a rua, a vista do mar. Que é, na verdade, aquilo de que esta minha gente tem medo e respeita. Já o vírus, tempestade que deixou meio mundo à deriva no meio de um oceano de incertezas, esse demorou um pouco a ser temido e respeitado. Mas, ainda assim, os caxineiros pareciam estar a levar o barco a bom porto. E mal o medo pareceu esbater-se no país, perante o sucesso dos esforços colectivos, lá os vi de regresso à rua-de-estar, a sala de convívio onde crescemos, alguns de máscara posta, outros nem por isso. Eu próprio regressei às minhas rotinas, devolvendo a minha mais nova à avó, às poças na praia onde aprende o nome dos peixes, ao parque, tantos dias fechado. Todos precisávamos disto.
Há mais de um mês, no entanto, que tenho a sensação de estarmos a perder o pé, mesmo em maré baixa. Primeiro foi o surto na fábrica onde a minha mãe trabalhara há décadas, ali ao pé da casa do Valter (Hugo Mãe), da casa de todos, porque nada aqui é longe de nada. Depois, a percepção de uns casos dispersos aqui e ali, com pouquíssima informação oficial sobre os mesmos, e a sensação de uma desarticulação entre o município e a junta de freguesia da cidade - que inclui Caxinas e Poça da Barca - fruto de um afastamento político entre as lideranças de ambas as instituições: eleitas, há três anos, numa mesma lista ironicamente chamada Nau - Nós Avançamos Unidos que, no momento em que essa união era mais necessária, nos surge como uma barca fragilizada.
E, agora, o vírus parece ter perdido o medo ao mar. Entrou num barco há já 15 dias, e prendeu-o ao cais. Chegou a outro, com menor ímpeto, entretanto. Pesca como sabe, na corrente dos nossos descuidos, este bicho invisível que nos leva em mil cuidados. Nesta última traineira, com a safra a decorrer, mestre e companha, já com um teste negativo, queriam ir trabalhar, deixando para trás um camarada infectado, desafiando, com outras vozes respeitadas na comunidade, as regras estabelecidas. É uma atitude que não surpreenderá quem conheça este modo de ser. Como não surpreende também que, após diálogo com as autoridades, tenham decidido cumprir a quarentena. Fizeram bem. Olhando para trás, não consigo deixar de me lembrar de uns quantos que saíram para a faina de peito feito, enfrentando temporais que a outros os prendiam em terra. E lembro-me como o mar os engoliu, às vezes à vista dos demais.
É importante que, nesta tempestade, nos mantenhamos à tona, segurando o leme e apontando-o ao único porto seguro: o da precaução, do cumprimento das regras, o da preocupação e respeito para com os outros que deixamos em casa. Não tenhamos vergonha de pedir ajuda, se necessitarmos. O município, ninguém duvide, intervirá, se for necessário. Outros podem intervir, se chamados. Todos teremos tempo para pescar. Todos teremos tempo para voltar aos cafés, e ao convívio com os nossos amigos - que saudades tenho eu dos meus.
Não podemos é esquecer que num lugar onde quase todos nos conhecemos, as falhas de uns rapidamente se tornarão nos problemas dos outros. A naufragar, já basta quando o mar nos surpreende, como várias vezes aconteceu na nossa história colectiva. Dar o flanco à vaga, quando nem sabemos nadar, e num momento em que ainda não nos deram uma bóia de salvação, a vacina, poderia ser suicídio. E gente de preto já temos nós em demasia, por aqui.