Entre a habitação social e o mercado: quando a casa é uma luta sem chão e sem tecto
Jorge e Maria da Conceição têm ordem de saída e não sabem para onde ir, Vítor Araújo receia perder o espaço sem água nem luz a que chama casa. Para eles, nem habitação social nem mercado são solução. Suspensão dos despejos termina em Setembro. Pedidos de ajuda não param de chegar à Associação de Inquilinos
Primeiro foi a tristeza. Uma mensagem da Porto Vivo – Sociedade de Reabilitação Urbana trazia a notícia temida por Vítor Araújo: a sua candidatura a uma das 14 casas da Sé com rendas acessíveis tinha sido excluída da fase de sorteio. Depois, já vazio de esperança, esbarrou na revolta. Em páginas de jornal, uma notícia da cerimónia de entrega das chaves aos contemplados com as habitações da Câmara do Porto mostrava ao homem de 58 anos uma das vencedoras: uma mulher de 26 incapaz de sair de casa dos pais e conseguir a sua autonomia num mercado onde os preços se revelam inacessíveis. “Quando percebi que tinha sido excluído pensei: ‘ok, alguém está pior do que eu.’ Mas depois percebo que uma pessoa que tinha um tecto foi escolhida enquanto eu continuo aqui…”
Aqui é entre quatro paredes enegrecidas de humidade, debaixo de um tecto onde a chuva entra, num exíguo espaço sem água nem electricidade. No Porto. Vítor Araújo repete uma e outra vez não estar contra a entrega de uma habitação àquela jovem: “Todos temos direito a uma casa, é o que diz a Constituição.” Mas numa escala de prioridades, sonhava que alguém a viver limitado à sobrevivência, como ele, pudesse chegar à frente desta vez. Sobretudo quando a autarquia lhe disse por seis vezes que as portas da habitação social estavam fechadas para ele, quando o Estado nem lhe respondeu aos dois pedidos de habitação feitos, quando o mercado privado tem preços incomportáveis para quem ganha um salário mínimo. E quando a não-casa onde vive pode ser demolida a qualquer momento e transformá-lo numa espécie de não-cidadão: sem direito a um tecto. “As casas a preços acessíveis eram a minha última esperança. Estou muito atrapalhado. Vivo aqui nestas condições e de um dia para o outro posso nem isto ter…”
Vítor Araújo é o último morador da ilha do Cruzinho, na Rua do Campo Alegre. Bairro operário onde cresceu e viveu boa parte da vida o jornalista e investigador da história do Porto Germano Silva, o Cruzinho foi sinónimo de comunidade forte durante décadas. Em 2017, o proprietário comunicou aos inquilinos o plano de demolir o espaço para ali erguer um prédio. Todos teriam de sair. Assim aconteceu, pouco a pouco, até ao fim de 2018: foram-se as pessoas, emparedaram-se as portas, cresceram ervas daninhas e acumulou-se lixo. No cimo do corredor, porém, ficou Vítor Araújo. Sem um contrato formal, apesar de ali ter chegado pela primeira vez em 1999. Sem ter para onde ir.
A angústia de não achar uma solução é familiar na Associação de Inquilinos do Norte de Portugal. A pandemia de covid-19 suspendeu os atendimentos presenciais até Maio e obrigou, depois disso, a reduzir o número de consultas. Mariana Martins, uma das quatro advogadas que presta apoio a inquilinos, faz actualmente sete a oito atendimentos por manhã, duas manhãs por semana. Uma média semelhante à dos outros profissionais. Contas feitas, atendem entre 224 e 256 pessoas por mês.
“Reduzimos por uma questão de segurança. Mas já há muitos pedidos, não há uma redução [relativamente ao período pré-covid]. Quem liga hoje já só consegue consulta daqui a um mês”, conta ao PÚBLICO a advogada. Até Março, chegavam à Associação de Inquilinos cerca de 500 pedidos de ajuda por mês. O problema, antes como agora, é quase sempre o mesmo: senhorios a opor-se à renovação do contrato. Um “jogo”, considera Mariana Martins, que “em 90% dos casos nem tem como objectivo a renúncia do contrato, mas apenas conseguir um aumento da renda”.
“Não temos solução”
Não é o caso de Jorge Carvalho e Maria da Conceição. Em Novembro de 2019, inesperadamente, foram convocados para uma reunião com um advogado: o senhorio havia falecido e os herdeiros tinham outros planos para o prédio onde habitam há 13 anos. Anunciaram a cessação dos contratos de arrendamento, e tinham até Maio para sair. O contrato de um ano, renovado de forma automática, nada diz sobre cessação – nem tempos de aviso para isso acontecer. Eles ficaram perdidos.
A pandemia foi para o casal drama e alívio: com a suspensão de todos os despejos, ganharam oxigénio por mais um tempo. Mas a aproximação do fim de Setembro, data até à qual o Governo decretou essa medida extraordinária, voltou a trazer insónias ao número 85 da Rua do Pinheiro. “Não temos solução, não sabemos o que fazer…”
Jorge Carvalho trabalha seis dias por semana, na empresa responsável pela limpeza das ruas da cidade. Recebe o salário mínimo e um subsídio por fazer noites – junta cerca de 700 euros por mês. Maria da Conceição abandonou o trabalho há cerca de cinco anos e nunca mais conseguiu voltar. “Tomara eu poder…”, lamenta enquanto mostra o extenso relatório médico: doença pulmonar obstrutiva, asma, hipertensão, depressão. Já tentou a reforma antecipada, mas sem sucesso. Não tem qualquer rendimento.
Como Vítor Araújo, também eles caem num vazio onde não encontram resposta: a empresa municipal Domus Social recusou a candidatura por quatro vezes, o mercado privado não está ao alcance. Terão a mais para uma das soluções e a menos para a outra. Na Segurança Social fizeram-lhes a promessa de um apoio para alimentos e medicação – mas também esse tarda a chegar. “Sinto-me abandonado”, pronuncia Jorge Carvalho, “nascido e criado em Santo Ildefonso”.
Antes de serem protagonistas desta história, viveram-na como espectadores. “Aqui na Rua do Pinheiro tudo se conhecia. Era a rua cheia, tudo daqui”, vai dizendo o homem de 57 anos num sopro de energia de quem recorda o pretérito feliz. “Agora é só alojamentos [locais]. Os moradores foram todos embora.”
Cruzinho vai ter residência de estudantes
Vítor Araújo assistiu ao mesmo na sua ilha. Desde 2018, o senhorio já prometeu realojá-lo em vários locais: em troca, teria de assinar um papel dizendo prescindir de qualquer direito quanto ao número 15 do Cruzinho. “Mas esse documento vem sempre antes do contrato do novo espaço”, lamenta. O último telefonema veio no início do mês, mas foram minutos de conversa sem qualquer consequência. Dias depois, uma máquina estava em frente à sua porta e perfurava o chão. “Disseram que estavam a ver a estabilidade do solo”, conta. “Sinto que algo está para acontecer.”
Na Câmara do Porto deu entrada um Pedido de Informação Prévia (PIP) que prevê a “construção de um edifício destinado a comércio e serviços (residência de estudantes e ginásio) e ainda o reperfilamento da Rua do Bom Sucesso e execução de arruamento de ligação entre a Rua Barbosa du Bocage e a Rua de Rodrigues Lobo”, informa o gabinete de comunicação da autarquia.
Rui Moreira chegou a admitir a hipótese de a autarquia comprar aquele bairro, mas além daquela ser uma “área não sujeita ao exercício do direito de preferência”, a avaliação municipal no valor de “cerca de 1,1 milhões de euros era muito inferior às ofertas que os proprietários teriam”.
Sem final feliz à vista, Jorge Carvalho promete resistência. “Vou deixar ir para tribunal, não tenho para onde ir”, diz de olhos baixos. “Estou desesperado…” A companheira ouve e jura não arredar pé. Se forem tirados à força, juram abancar bem perto dali: “À porta da Câmara do Porto.” Vítor Araújo já não sabe ao que se agarrar. “Estou cansado”, admite, à entrada da casa sem água nem luz onde pernoita e teme perder. “A minha última esperança eram as casas a preço acessível…”