A apatia face à discriminação atormentou a quarentena de Agon Branza — e dela saiu um vídeo

Glitter guns dá conta da luta pessoal do produtor português radicado em Londres para ser mais do que “um objecto inanimado” perante o caos do mundo. Música integrará um EP de estreia a editar no último trimestre de 2020.

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Agon Branza

Gonçalo Abrantes descreve uma “arma de purpurina” como um objecto de guerra que, “no fim do dia, não tem efeito nenhum”. É, no fundo, uma ferramenta com uma função “meramente decorativa”: serve para dar cor à fotografia ou aos postais (para aqueles que ainda os mandam) e nada mais do que isso.

O músico, dono do alter-ego Agon Branza, deu com o conceito enquanto reflectia sobre a “apatia” que domina os nossos dias e a imponência que nos congela quando testemunhamos situações de “discriminação” – são dois termos importantes, estes de apatia e discriminação, a que vai regressando regularmente o produtor português radicado em Londres enquanto conversa com o PÚBLICO. Vieram-lhe à cabeça as maneiras como desistimos com demasiada facilidade quando nos apercebemos de que não vamos conseguir revolucionar o sistema da noite para o dia. Pensou nas imagens de violência e destruição que diariamente enchem feeds e lembram que não há futuro, no chamado activismo “inócuo” de redes sociais ou nas “pessoas que fazem posts no Facebook e dizem que lutam” ao mesmo tempo que “a vida dos discriminados não muda”.

As suas inquietações manifestam-se em Glitter guns (Arma de purpurina, em português), faixa que integrará o seu primeiro EP – que, ainda sem data de lançamento oficial, deverá ser editado no último trimestre de 2020 – e cujo vídeo, divulgado esta sexta-feira, dá conta da sua luta pessoal para se afirmar como mais do que “um objecto inanimado” perante o caos do mundo.

Um vídeo que, de resto, foi desenvolvido inteiramente durante a quarentena, com contribuições da activista Nina Vigon Manso, do animador Rafael Zarza García e do designer gráfico Luís Nogueira, que concretizaram um improvável triângulo composto pelas cidades de Londres, Vila do Conde e Roterdão. “Muitas vezes, sinto que existe uma força e um movimento dentro de mim, mas não há mais para realmente actuar e fazer algo”, explica Gonçalo Abrantes, que recebeu de Luís Nogueira a ideia de fazer “um molde de gesso” da sua cara. É o tal “objecto inanimado”, que no vídeo “racha e desfaz-se”, desvendando uma projecção do seu rosto, outrora aprisionado.

Só que, fora do casulo, esse rosto não tem vida fácil: há fantasmagóricas bolas que o “engolem”, raízes que o “sufocam”, “sombras” e “mutações” que reconfiguram os seus traços. No fim, regressa a fossilização. Isto porque “a apatia deixa marcas e é como um círculo vicioso”, diz o artista. “Se não o quebrarmos, voltamos sempre ao início.”

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Frame do vídeo de Glitter guns Agon Branza

Estamos rodeados de helicópteros e drones

Há nos cadernos de Gonçalo Abrantes rascunhos iniciais de Glitter guns que antecedem a pandemia, mas a canção “revelou novas camadas” no confinamento, durante o qual “as pessoas tiveram tempo para verdadeiramente prestar atenção” ao perigoso e tenso estado do mundo. “There are helicopters and drones circling our bones”, frase cantada no início do refrão, é uma metáfora que faz particular sentido num momento em que a pulsação dos Estados Unidos é novamente ditada pelo racismo estrutural, os direitos da comunidade LGBT estão em xeque na Polónia, Alexsander Lukashenko ameaça a democracia na Bielorrússia ou Jair Bolsonaro lida catastroficamente com os efeitos do novo coronavírus no Brasil. “Muitas vezes, perco-me na revolta interior que estas crises humanitárias me provocam e sinto uma certa incapacidade de agir contra elas”, confessa o produtor, que, em quarentena, teve um impedimento físico a alimentar os seus obstáculos psicológicos.

A sua expressão facial, por outro lado, que em simultâneo denuncia ares de espanto e inércia, lembra a incontornável imagem de Thom Yorke no vídeo de No surprises, faixa do clássico OK Computer. Não foi pensada como uma referência directa, mas não surge do acaso: o gosto “ecléctico” de Gonçalo Abrantes leva Agon Branza a abraçar em iguais medidas os tecidos sonoros dos Radiohead, a caneta “confessional” de cantautoras como Fiona Apple, a electrónica experimental de Oneohtrix Point Never ou as explorações barrocas de Johann Sebastian Bach – uma paixão que o músico deve sobretudo à sua “formação clássica” e aos dez anos que passou no Coro Gulbenkian. Daí que Glitter guns seja esta articulada amálgama de sensibilidade chamber pop e visão retrofuturista, o canto lânguido do artista na linha da frente.

Quando, há poucos meses, iniciou o projecto, o produtor demorou “algumas semanas” a chegar ao nome Agon Branza. Mas no fim valeu a simplicidade: “Aparentemente, é difícil dizer Gonçalo em Inglaterra e então toda a gente me chama Gon”, ri-se. A passagem para Agon surgiu porque, em grego antigo, a palavra define “o momento da tragédia em que há um diálogo entre o antagonista e o protagonista”. Branza, adaptação livre de Abrantes, remete, numa língua de que já não se recorda – “Que falha grave”, comenta divertidamente –, para “as folhas secas do pinheiro”, que “guardam algum sentido poético porque, apesar de secas, continuam afiadas”.

É, então, um “diálogo afiado” que Agon Branza propõe. Porque muito melhor e mais bem-vindo é um diálogo afiado do que o grito que a apatia calou.

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