Ditaduras em exposição. Propaganda e uso público do passado no período entre guerras
As ditaduras que surgiram nos anos 1920 aperceberam-se cedo de que as exposições histórico-políticas podiam ser um potente meio de propaganda. Uma pesquisa focada nas exposições do Estado Novo propõe uma perspetiva comparada com outras experiências europeias e revela como são muitos os pontos em comum.
O boom expositivo dos anos 30
As grandes exposições de cariz internacional têm a sua época privilegiada a partir da segunda metade do século XIX. Inicialmente organizadas como eventos de cariz nacional, a partir de 1851, ano da Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations de Londres, tornaram-se uma montra internacional para as nações participantes. Até à Primeira Guerra Mundial, as exposições foram muito influenciadas pela Revolução Industrial e pelas ambições coloniais da época. Durante essa “era do progresso”, as exposições foram – como disse o filósofo Walter Benjamin – “os locais da peregrinação ao fetiche das mercadorias”, os mais importantes eventos públicos com um impacto nacional e internacional. Ao mesmo tempo, os pavilhões coloniais, onde os países podiam promover os seus territórios ultramarinos e mostrar aquilo que consideravam ser as características etnográficas das populações indígenas, surgiam como um modo de afirmação colonial.
Os relatos das trincheiras e a devastação sofrida por grande parte da Europa durante a Grande Guerra vieram modificar completamente a associação até então quase direta entre progresso e tecnologia. Nesta nova conjuntura em que a tecnologia se assumia como fonte de destruição bélica, as exposições não podiam continuar com os seus discursos de cooperação, harmonia e intercâmbio de saberes entre as diferentes nações – o que, no entanto, não significou uma diminuição na frequência destes eventos. Pelo contrário: no período entre guerras o seu número atingiu o pico, tanto que em 1928 foi criado o Bureau International des Expositions. Sediada em Paris, esta agência teve, desde o seu início, o duplo objetivo de regulamentar as exposições dividindo-as em categorias geográficas e temáticas — nacionais/internacionais, coloniais, artísticas, comerciais — e de estabelecer regras comuns para a organização das exposições universais.
Para além de aumentarem em número, nos anos 1930 as exposições acentuaram o seu cunho político. Com o surgimento de várias ditaduras, as mostras internacionais tornaram-se palcos privilegiados para expor as diferentes visões políticas, como aconteceu no caso da Exposição de Paris de 1937 onde o pavilhão da Alemanha nazi e o da União Soviética se ergueram face a face em frente do Trocadéro.
Por outro lado, as exposições nacionais foram planeadas como poderosos meios de propaganda onde eram forjados os mitos das origens e as genealogias que ligavam o presente ao passado, de modo a representar e legitimar o poder político. Neste cenário, Portugal não foi uma exceção.
A exposições histórico-políticas do Estado Novo
O uso público da História como meio de encenação do poder político foi sempre um tópico central da minha investigação. No livro Tra Patria e Campanile (FrancoAngeli 2014) analisei o caso da exposição internacional de 1911, realizada ao mesmo tempo em Roma, Florença e Turim — as três cidades que foram capitais de Itália durante o processo de unificação — para celebrar os 50 anos da criação da nação italiana e demonstrar que, não obstante o reino ser muito recente, considerava-se o legítimo herdeiro de uma história milenar. Em 2013, quando comecei a minha investigação sobre as relações culturais entre a Itália e Portugal no período entre guerras, interessei-me particularmente pelo estudo das afinidades e das diferenças entre as exposições histórico-políticas organizadas nos dois países, assim como pela circulação dos modelos expositivos e a troca de informações entre intelectuais.
Logo após a criação oficial do Estado Novo em 1933, o regime começou a investir energias e recursos financeiros em vários tipos de exposições. Foi dada grande atenção às exposições coloniais, como a que teve lugar no Porto em 1934. No mesmo período, o Estado Novo promoveu a sua imagem no estrangeiro através da participação na exposition internationale de Paris em 1937, bem como nas world’s fair de Nova Iorque e Golden Gate International Exhibition de São Francisco, ambas em 1939. Por fim, em linha com uma tendência comum noutras ditaduras europeias, o Estado Novo realizou nos anos 1930 quatro exposições histórico-políticas que selecionavam alguns dos acontecimentos considerados “gloriosos” numa linha de continuidade entre passado e presente.
Se na grande Exposição do Mundo Português, organizada em 1940 como pilar das Comemorações do Duplo Centenário (o da Fundação em 1140 e da Restauração em 1640), as raízes do regime inscritos no passado remoto da nação (marcado pelos grandes acontecimentos da fundação, restauração e da expansão marítima), nas outras mostras o Estado Novo promoveu uma releitura legitimadora da história mais recente. Por ocasião da Exposição Histórica da Ocupação, organizada no Parque Eduardo VII em 1937, os visitantes eram convidados a assistir a uma aula de história: através dos documentos de arquivo e objetos de arte, pretendia-se demonstrar a progressiva decadência da missão imperial portuguesa a partir do fim Monarquia Constitucional até à Primeira República de 1910. O itinerário terminava numa sala dedicada ao Acto Colonial de 1930, indicado no catálogo como o documento que testemunhava que a ditadura tinha tido capaz de restabelecer a “continuidade com o glorioso passado nacional”.
A contraposição entre o novo contexto político e a decadência atribuída às décadas anteriores também esteve na base das duas exposições organizadas em Lisboa no Pavilhão Português das Indústrias no Parque Eduardo VII para celebrar a Revolução Nacional de 1926: a Exposição Documentária da Obra da Ditadura de 1934 e a Exposição do Ano X de 1936. Nos dois casos, a propaganda subjacente era bastante clara: o golpe de 1926 não só tinha acabado com a Primeira República, mas substituído o caos político por uma nova ordem nacional. No caso da exposição de 1934, António Ferro planeou um percurso que começava por mostrar aos visitantes duas centenas de fotografias a testemunhar a turbulência e violência políticas vividas entre as revoluções de 1910 e, depois, através da igualmente convincente linguagem dos números e dos gráficos, a exposição procurava provar como os resultados económicos e financeiros alcançados por Salazar tinham finalmente trazido estabilidade à nação.
Este tipo de narrativa, bem como algumas escolhas artísticas despertaram o meu interesse, porque sugeriam que existiam de facto afinidades com a Mostra della Rivoluzione Fascista realizada na capital italiana para celebrar o aniversário da Marcha sobre Roma, o golpe que em 1922 levou Mussolini ao poder. Um entre vários exemplos possíveis: se olharmos para o cartaz da exposição portuguesa de 1936, da autoria de Fred Kradolfer, e o realizado em 1932 por Mario Sironi para o certame fascista, notamos de imediato as semelhanças, nomeadamente no uso das cores vermelha e preta e do número romano X para indicar o décimo ano da revolução.
Uma história cultural
O estudo que estou a levar a cabo pretende ser bem mais do que uma simples comparação entre as exposições realizadas nos dois países, ou do que uma pesquisa sobre a influência que o regime de Mussolini teve em Portugal. O meu objetivo é reconstruir uma história cultural da política do Estado Novo e das ligações que o regime e os seus intelectuais estabeleceram com as outras ditaduras, através da análise das arquiteturas efémeras, das representações artísticas e das narrativas históricas subjacentes às exposições históricas-políticas realizada pelo salazarismo. Um recente estudo efetuado por Nadia Vargaftig demonstrou o quanto esta abordagem pode ser proveitosa no caso das exposições coloniais. A historiadora francesa analisou os “impérios de cartão” representados nos pavilhões de Portugal e Itália nas exposições coloniais nacionais e estrangeiras, realçando o modo como, através da ostentação dos respetivos projetos coloniais, os dois regimes utilizavam uma linguagem política e artística semelhante para se legitimarem. Um caminho análogo pode, portanto, ser feito com as exposições históricas-políticas.
Para além das possibilidades de uma análise iconográfica, as declarações dos intelectuais e artistas envolvidos na organização das exposições também confirmam a fluidez da circulação de conhecimento e a hibridez dos modelos, que ultrapassavam os confins nacionais. No catálogo Exposição Documentária da Obra da Ditadura de 1934, por exemplo, os organizadores admitem que a mostra “não tinha pretensões de originalidade”, dado que outros países já tinham demonstrado o “grande poder de síntese fácil de apreender” deste tipo de eventos. Igualmente, os relatórios que Augusto de Castro enviou de Roma, onde esteve como chefe de missão na embaixada da Santa Sé e plenipotenciário no Quirinal, realçam que o futuro comissário da Exposição do Mundo Português de 1940 tinha tido a oportunidade de dialogar com Galeazzo Ciano, genro do Mussolini e figura de destaque da propaganda italiana. Em várias ocasiões os dois conversaram acerca dos planos para a realização da Mostra Augustea della Romanità, organizada em 1937 pelo Governo fascista para celebrar o bimilenário do imperador Augusto e realçar o estatuto de herdeiro da Roma Antiga por parte do regime.
Estes e outros documentos demonstram que para realizar um estudo deste tipo é fundamental reconstruir as trajetórias dos principais protagonistas. De facto, embora grande parte desta investigação tenha beneficiado dos documentos do Secretariado da Propaganda Nacional e do Arquivo Salazar guardados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, as cartas mais inesperadas foram encontradas no Arquivo dos Negócios Estrangeiros, no Archivio Centrale dello Stato em Roma e no Arquivo António Quadros em Rio Maior. No caso de António Ferro, a pesquisa no arquivo do Bureau Internacional des Expositiones, na Biblioteca Nacional de Paris e na Biblioteca Pública de Nova Iorque permitiu demonstrar que no papel de organizador de exposições António Ferro, diretor do SPN, criou uma rede de contactos em ambos os lados do Atlântico.
As várias linguagens das exposições
As exposições são um espetáculo urbano baseado na arquitetura efémera, são “cidades de ilusões” onde os visitantes, embora conscientes do seu caráter ilusório, podem viajar no tempo e no espaço. Estes eventos são também meios de propaganda extremamente potentes, porque conseguem fazer uso de muitas linguagens, desde um nível muito imediato, feito de jogos de luzes e monumentalidade, até às alegorias mais complexas e sofisticadas. Estas características tornam-nas um notável objeto de estudo interdisciplinar que cruza urbanismo, arquitetura, construção histórica, identidade nacional e autorrepresentação de regimes, mas fazem também das exposições uma “terra de ninguém” entre as humanidades, as ciências sociais e as ciências técnicas. O panorama expositivo do Estado Novo dos anos 1930 já foi alvo de muitas investigações e continua a despertar atenção em vários campos. São disto exemplo os trabalhos de Artur Portela e Margarida Acciaiouli na área da História da Arte, os recentes projetos internacionais de arquitetos e urbanistas da rede UEDXX – Urbanism of European Dictatorships during the XXth Century, bem como os estudos sobre a memória e o impacto das exposições na população realizadas por antropólogos envolvidos no projeto Fora do Padrão. Quanto à História, são também já muitos os trabalhos que se debruçaram sobre a vertente histórica-política destes eventos, embora com menor sistematização do que aquela que tem sido dedicada às exposições coloniais e com a grande limitação de se focarem em caso específicos.
No ano em que se assinalam os oitenta anos da mais importante exposição do Estado Novo, quais são os novos desafios desta temática? Tal como tentei que ficasse explícito ao longo deste texto, creio que são sobretudo dois: o entendimento da experiência portuguesa num quadro mais abrangente e um maior diálogo entre disciplinas. O que é importante realçar é que, para compreender e reconstruir estes fenómenos tão complexos de modo holístico, é necessária uma abordagem que consiga partir das várias conclusões alcançadas por diferentes disciplinas e inserir as exposições num quadro mais abrangente que permita compreender melhor o regime português nas suas especificidades e semelhanças com outras ditaduras. O estudo das relações entre a Itália e Portugal representa, portanto, um mero ponto de partida e é desejável que investigações futuras analisem outros casos de forma a chegarmos a uma reconstrução transnacional dos modelos expositivos e das relações culturais no período entre guerras.
Historiadora, ICS-ULisboa
A autora segue o novo acordo ortográfico