A ciência, o último reduto da verdade
O que fazer quando recebemos uma mensagem no WhatsApp, vemos um post no Facebook ou nos deparamos com uma notícia num meio de comunicação social sobre as mais incríveis teorias “científicas” acerca do vírus SARS-CoV-2? O mais importante é refletir antes de encaminhar uma suposta “notícia” para todos os nossos contactos.
Não é de hoje que as chamadas fake news tomaram de assalto o palco das redes sociais, e mesmo de meios de comunicação social ditos tradicionais. Enquanto prosperam na ignorância e no medo, essas notícias falsas são, também elas, instigadoras do desconhecimento e do receio generalizados, num círculo vicioso que se auto-alimenta e perpetua. Claro que não faltam vozes sensatas alertando para os perigos do consumo de posts, artigos ou peças televisivas apócrifas, e apelando à inteligência e ao exercício do sentido crítico de cada um antes de se tomarem como certas as “verdades” que nos chegam às mãos através do Instragram, Facebook, e Twitter, ou mesmo dos jornais e da televisão. No entanto, infelizmente, essa sensatez nem sempre prevalece.
A recente pandemia criou um chão fértil para a divulgação de notícias destituídas de qualquer fundamento científico, cujo único propósito é instalar a confusão, e cujo único efeito é contribuir para agravar o problema. É por isso que, porventura nunca como agora, é urgente desmontar a mentira e a falsidade, e apelar ao espírito crítico, à capacidade de procurar informação cientificamente fidedigna e à reflexão de cada um, antes de aceitar ou, pior ainda, propalar a mentira, ainda que o faça com a melhor das intenções.
Desde o início do período que atravessamos, chegaram-me às mãos as mais incríveis teorias “científicas” acerca do vírus SARS-CoV-2 e sobre como o combater. Lembro-me de um vídeo de um auto-intitulado “químico autodidata” que afirmava que o álcool a 70% não mata os microorganismos, apenas esteriliza, advogando ao invés o vinagre como o desinfetante ideal para o vírus. Esqueceu-se de mencionar que “esterilização de materiais é a total eliminação da vida microbiológica destes materiais”, ou seja, a morte desta. Ou da receita segundo a qual “Tudo o que precisamos fazer para vencer o coronavírus, é ingerir mais alimentos alcalinos que estão acima do nível de pH do vírus”, listando como exemplos o abacate, com o seu pH de 15,6 e o dente de leão com o espetacular pH de 22,7.
Mesmo pondo de parte o facto de que o vírus se aloja nas vias respiratórias, pelo que o pH da comida ingerida para o estômago nada tem que ver com o pH que o vírus experiencia, ocorre que a escala de pH vai de 1 a 14, em que 7 é neutro, abaixo de 7 é ácido, e acima de 7 é alcalino, pelo que os valores apresentados nesta receita miraculosa nem sequer existem.
Ou, mais recentemente, lembro-me da “notícia bombástica” de que a covid-19 não é causada por um vírus, mas sim por uma bactéria, devendo por isso ser combatida com antibióticos e aspirina. Isto quando está perfeitamente demonstrado que o agente etiológico da doença é o vírus SARS-CoV-2, tendo o mesmo já sido isolado, visualizado, completamente sequenciado, e amplamente estudado em centenas de laboratórios pelo mundo.
Se algumas destas “notícias” são relativamente inócuas e sobretudo risíveis, outras são manifestamente perigosas e podem ter consequências potencialmente graves para a saúde. Como por exemplo a “receita” de tratamentos homeopáticos para a covid-19 que também me chegou, segundo a qual a doença se curaria com a ingestão de cânfora diluída ad infinitum – ou seja, água – quatro vezes por dia. De resto, para percebermos os perigos com que nos confrontamos, basta pensar que os líderes dos dois maiores países do continente americano fazem alarde em propagandear o uso da hidroxicloroquina como um tratamento eficaz contra a covid-19, ao arrepio de toda a evidência científica, tratando-se inclusivamente de um fármaco que pode ter efeitos secundários muito graves em pacientes já por si debilitados.
O que fazer, então, quando recebemos uma mensagem deste tipo no WhatsApp, vemos um post no Facebook ou nos deparamos com uma notícia num meio de comunicação social? O mais importante é refletir antes de encaminhar automaticamente essa suposta “notícia” para todos os nossos contactos, sem ponderação prévia. Qual a fonte da notícia? Qual a credibilidade dessa fonte? Qual o impacto que ela pode ter em quem a receber se porventura for falsa? Quero correr esse risco? Estas são perguntas que todos nos devemos colocar antes daquele gesto quase automático de reencaminhar a mensagem ou o post.
Para nos ajudar nessa tarefa de análise, podemos recorrer a literatura científica adequada, nomeadamente artigos em revistas científicas referenciadas e revistas por pares; a sites médicos fidedignos, como os da Organização Mundial da Saúde, da Direção-Geral da Saúde ou dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças americanos; ou, simplesmente, consultar a opinião do nosso médico assistente ou de um cientista que nos possa elucidar.
Vários dos exemplos que dei atrás chegaram-me precisamente através de pessoas que, tendo recebido aquelas mensagens, solicitaram a minha opinião científica acerca da sua idoneidade. Atitude sensata, de quem não quis contribuir para a desinformação generalizada que assola a Internet e alguns meios de comunicação social. E, na dúvida, a atitude mais prudente é, porventura, não disseminar essa informação, pelo menos até que a sua solidez científica tenha sido devidamente averiguada.
Será esta receita infalível para prevenir todos os males que as fake news trazem ao mundo de hoje? Infelizmente não. A sofisticação de quem tem como único objetivo desinformar torna a tarefa de preservação da verdade um esforço hercúleo, mas um esforço que todos devemos fazer. E se, em determinadas áreas da política ou da sociedade, as ferramentas para esse combate parecem ser escassas, nos domínios da saúde e da medicina, bem como em tantos outros, o conhecimento científico é a arma que mais eficazmente nos pode proteger da ignorância. Num mundo em que a falsidade e os factos tantas vezes se confundem, a ciência é, e continuará a ser, o último reduto da verdade.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico