Amor e uma cabana… com empregada doméstica?!
Encafuadas em casa com os nossos amores verdadeiros, adultos e crianças, logo nos apercebemos das assimetrias do trabalho doméstico, que tolerávamos porque estava diluída num sem número de ajudas.
Todas as mulheres conhecem o desamor ou a total ausência de amor. Passámos os anos de juventude a tentar evitar os erros e as concessões das gerações de mulheres que nos precederam, por isso, embora não conseguíssemos escapar totalmente da sociedade patriarcal (uma sociedade que aprendeu a dissimular as suas raízes misóginas, discriminatórias e violentas), lá fomos esperneando e arranjando formas de fugir das esparrelas.
Quem nunca proclamou aos quatro ventos “havia de ser comigo!” para pouco tempo depois se ver enredada numa dessas teias silenciosamente urdidas desde a nossa infância (ele é histórias de princesas, ele é amor romântico, ele é boys will be boys, ele é a natureza é assim e não assado, e por aí fora). No entanto, o amor verdadeiro existe — palavra de quem tem muitos termos de comparação e sabe exactamente ao que corresponde o seu contrário. Mas aí é que está precisamente o problema: quando encontramos o amor verdadeiro, depressa nos apercebemos que, por muito feminista que ele tente ser, o facto é que exige sempre uma grande dose de concessões e um poço de compreensão sem fundo. A sério? A sério.
Encafuadas em casa com os nossos amores verdadeiros, adultos e crianças, logo nos apercebemos das assimetrias do trabalho doméstico (para além do trabalho profissional, claro, porque agora somos todas moças trabalhadoras), que tolerávamos porque estava diluída num sem número de ajudas (a mãe, a tia, a vizinha, a amiga, a empregada, tudo mulheres que não têm mesmo mais nada que fazer, por isso dispensam o seu tempo a ajudar as Boas Feministas deste mundo — elas e os companheiros, claro, que esses também ajudam muito…).
E eis que o confinamento pandémico nos deixou só com a pequena ajuda que habita lá em casa, e aí é que o caldo começa a entornar. A paciência estica, mas tem limites, e se o famoso ideal “amor e uma cabana” já não convence ninguém hoje em dia, o facto é que nem acrescentando a empregada doméstica lá vamos. Até porque custa perceber que o nosso feminismo se sustenta tão frequentemente nos ombros sobrecarregados de tantas mulheres, para além dos nossos próprios, claro. E o cúmulo é mesmo aquela mulher que se levanta às 4h, apanha dois autocarros, um barco e uma carruagem de metro para chegar a nossa casa no centro da cidade para limpar os nossos livros. Será esta aquela rapariga que, na altura em que o 6.º ano era o limite da escolaridade obrigatória, deixou a escola para ganhar dinheiro lá para casa? Será esta aquela rapariga que partilhava a sala de aula connosco e da qual já nem nos lembramos do nome, decorridas umas quantas décadas e um suposto percurso de ascensão social? Vamos admitir: dá-nos problemas de consciência, para além da consciência de que as assimetrias, em casa e no trabalho, estão mais arreigadas do que aquilo que supúnhamos.
E, no entanto, aqui estamos, sem saber bem o que fazer quando a criança diz que a mamã está sentada na cadeira errada porque vai a conduzir (A sério? A sério!). E agora? Fugimos mais uma vez a sete pés? Deixamo-nos ficar caídas na esparrela? Ou será possível entrever uma terceira via, assim uma espécie de feminismo das pequenas coisas (porque o feminismo não é só activismo, luta política ou reflexão teórica)? Sem solução à vista, por ora, vamo-nos imaginando nessa tela burguesinha por excelência, tal qual Anna Karina, a deambular ao longo de um curso de água qualquer e a cantarolar — qu’est-ce que je peu faire? Je sais pas quoi pas faire.