Nasce uma Estrela
Quando estiver a funcionar em pleno, daqui a mais de uma década, o ITER será a demonstração prática que a humanidade foi capaz de criar uma nova estrela e de a controlar para dela extrair energia útil.
Os nossos conhecimentos sobre as leis da Física, para os quais contribuíram de forma decisiva Newton, Maxwell, Planck, Einstein, Bohr, Fermi e tantos, tantos outros, evoluíram de forma especialmente marcante durante o século XX. Foi neste século que se chegou ao actual entendimento de que todos os fenómenos do universo conhecido são explicáveis pela existência de apenas quatro interacções fundamentais: a gravidade, o electromagnetismo, a interacção forte e a interacção fraca.
O Modelo Padrão é a designação, pouco inspiradora, da teoria que explica três destas interacções (electromagnetismo, força forte e força fraca). Esta teoria foi desenvolvida durante a segunda metade do século XX e unifica diversas teorias específicas com nomes apenas conhecidos dos especialistas, tais como electrodinâmica quântica, cromodinâmica quântica e teoria eletrofraca, entre outras.
As leis da Física permitem-nos prever, com grande precisão, o comportamento da matéria em condições tão diferentes como o interior de uma célula, o centro de uma estrela ou a superfície da Lua. Embora existam ainda muitas questões em aberto, que são objecto de investigação activa pela comunidade científica, a nossa compreensão das quatro interacções fundamentais representa, talvez, a maior conquista da ciência e da humanidade.
Esta compreensão profunda do mundo físico permitiu-nos desenvolver todas as tecnologias que usamos e que caracterizam a sociedade moderna: laser, telemóvel, ressonância, radiografia, automóvel e avião, sem esquecer pára-raios, locomotiva, alto-forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão e mesmo o desembarque em foguetão, na superfície lunar, como tão poeticamente escreveu António Gedeão.
As quatro interacções fundamentais são responsáveis por todos os fenómenos conhecidos e observados até hoje, desde as reacções químicas e a evolução das espécies até à criação de planetas, estrelas e galáxias. A gravidade é a força agregadora que cria os corpos celestes e nos mantém em órbita do Sol e presos à superfície do planeta; o electromagnetismo explica não só a luz e electricidade, como também toda a química e biologia; a força forte mantém estáveis os núcleos dos átomos (constituídos por protões e neutrões), e a interacção fraca é responsável por diversos fenómenos menos conhecidos mas importantes, entre os quais a fusão nuclear, que está na origem da energia que recebemos do Sol.
O Sol é, na realidade, um gigantesco reactor nuclear. A sua enorme massa (cerca de 330.000 vezes a do nosso planeta) comprime, no seu centro, os núcleos dos átomos de hidrogénio a temperaturas da ordem dos 15 milhões de graus. Os núcleos destes átomos (protões) fundem-se para dar origem a um núcleo de hélio (constituído por dois protões e dois neutrões), e no processo libertam uma quantidade significativa de energia sob a forma de partículas de luz (fotões) que, após completarem uma travessia acidentada que demora tipicamente centenas de milhares de anos, atingem a superfície do Sol. A partir daí, estes fotões espalham-se pelo Universo, sendo que alguns deles iniciam uma viagem de oito minutos até à Terra, aquecendo o planeta e tornando possível a existência de vida.
Este mesmo processo de conversão do hidrogénio em hélio foi usado nas bombas termonucleares, testadas a partir de 1952 mas, felizmente, nunca usadas em situações de guerra. As bombas termonucleares, que usam fusão nuclear, são ainda mais poderosas que as bombas atómicas (usadas em Hiroshima e Nagasaki), que se baseiam num outro fenómeno, a cisão de núcleos de átomos pesados, para libertar energia.
Este mecanismo de cisão de núcleos de elementos pesados (urânio ou plutónio) é actualmente usado nas cerca de quatro centenas de reactores nucleares em existência que geram aproximadamente 10% da energia eléctrica usada pela humanidade. Embora ambos os processos se baseiem em transformações de elementos noutros elementos (efectuando de facto a transmutação dos elementos, que os alquimistas tentaram alcançar com a pedra filosofal), a fusão nuclear e a cisão (ou fissão) nuclear têm características muito diferentes.
Ao contrário da cisão, a fusão nuclear não gera directamente isótopos radioactivos que tenham de ser armazenados durante longos períodos, e usa como combustível um elemento que é muito abundante, dado que um pouco mais de 10% de toda a água é hidrogénio. Isso faz com que a energia de fusão seja praticamente inesgotável, para todos os efeitos práticos, dada a abundância do combustível e a eficiência do processo.
Conseguir efectuar fusão nuclear controlada, que reproduzirá na Terra o mesmo fenómeno que ocorre no centro do Sol, é uma ambição já com mais de meio século. Porém, apesar de o mecanismo de fusão ser bem conhecido e ter sido reproduzido muitas vezes, os problemas práticos de engenharia têm-se revelado muito desafiantes.
A dificuldade reside em controlar um fluido (designado por plasma) a uma temperatura de dezenas de milhões de graus, sem que se perca o controlo do mesmo e sem que se destruam rapidamente as paredes do contentor. Sucessivos projectos têm criado protótipos cada vez maiores e mais complexos, culminado com o mais ambicioso de todos, o ITER, um reactor nuclear de fusão que está a ser construído em Cadarache, França, por um consórcio internacional que reúne 35 países, entre os quais Portugal.
No passado dia 28 de Julho, uma cerimónia assinalou o início da montagem do reactor propriamente dito, após anos de construção das infraestruturas de aço e betão necessárias para suportar a estrutura toroidal com 20 metros de diâmetro, que pesará cerca de 23.000 toneladas (o triplo da Torre Eiffel). O objectivo deste reactor é demonstrar que é possível desenvolver um processo de fusão controlado que gere de forma sustentada muito mais energia do que a que é gasta para controlar todo o sistema. As temperaturas no coração deste reactor serão ainda mais altas que as temperaturas no centro do Sol (serão da ordem dos 150 milhões de graus) porque a pressão será muito mais baixa.
A engenharia Portuguesa tem desempenhado um papel importante neste projecto, contribuindo para diversas componentes do reactor, desenvolvidos por instituições de investigação e por empresas de engenharia. O Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear do Instituto Superior Técnico, que integra mais de 100 investigadores da área, tem sido particularmente activo nesta frente e tem liderado a contribuição de Portugal neste projecto único.
Quando estiver a funcionar em pleno, daqui a mais de uma década, o ITER demonstrará a exequibilidade da fusão nuclear como um processo de geração de energia eléctrica limpo, inesgotável e não poluente. Será a demonstração prática que a humanidade foi capaz de criar uma nova estrela e de a controlar para dela extrair energia útil.
A fusão nuclear será uma contribuição fundamental para a sustentabilidade da nossa civilização, mas terá de ser complementada com tecnologias que permitam armazenar e distribuir eficazmente a energia gerada, desafios que já agora são críticos na gestão das energias renováveis. Também aqui o profundo conhecimento do Universo, desenvolvido nos últimos séculos por tantos e tão brilhantes físicos, desempenhará um papel fundamental.