Rotas terrestres até à Líbia são das mais mortíferas do mundo para refugiados, diz ACNUR

Quem sobrevive conta histórias terríveis de tortura e violência, muitas vezes às mãos de forças de segurança. Agência da ONU pede que os refugiados e migrantes interceptados no mar deixem de ser enviados de volta para a Líbia.

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Refugiados sírios num campo na ilha de Lesbos, na Grécia ORESTIS PANAGIOTOU/LUSA

É impossível passar o deserto para chegar à Líbia sem pagar a traficantes que organizam as viagens, e vão passando as pessoas de grupo em grupo. Cada grupo de traficantes pede mais dinheiro na paragem seguinte. Quem fica sem dinheiro é torturado, fechado em armazéns com dezenas ou centenas de pessoas sem uma única casa de banho, se for mulher ou rapariga é provável que seja violada (alguns homens e rapazes também).

O mais recente relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e do Mixed Migration Centre (MMC) do Conselho Dinamarquês de Refugiados repete relatos destes, e tenta dar uma ideia da dimensão das mortes que ocorrem na rota que leva à Líbia — de onde os refugiados e migrantes esperam apanhar um barco que não seja interceptado, e que não afunde, e que os leve finalmente à Europa. 

Pelo menos 1750 pessoas não sobreviveram à viagem nestas rotas terrestres desde países da África Ocidental, Central e Corno de África, como a Somália, Sudão, Níger ou Guiné, com destino à Líbia, entre 2018 e 2019, diz o relatório. Ou seja, uma média de 72 mortes por mês. É um número que provavelmente pecará por defeito, e faz desta das mais mortíferas rotas do mundo para refugiados e migrantes.

Este ano, ainda que haja dados a chegar, morreram nestas rotas pelo menos 70 refugiados, incluindo 30 assassinados, no final de Maio em Mizdah (Líbia), por pessoas responsáveis pela sua viagem.

As viagens são pontuadas por todo o tipo de abusos, contam sobreviventes.

“No deserto, se um pneu fura, é difícil de mudar, o macaco vai-se afundando na areia”, contou um refugiado da Guiné citado no relatório sobre a travessia do deserto do Níger para a Argélia. “Por isso, usaram um homem que não tinha mais dinheiro para pagar para ajudar a segurar o macaco. Esse homem não aguentou o esforço, e deixaram-no lá.”

Uma mulher somali conta que foi repetidamente violada em vários pontos do percurso. O pior foi na Líbia. “Como não tinham métodos contraceptivos, usavam sacos de plástico. Fiquei grávida outra vez. Perdi o meu bebé novamente.”

Relatos de tortura não são novos na Líbia, mas o relatório destaca um dado recente: uma parte muito significativa dos abusos, especialmente os que não incluem violência sexual, estão a ocorrer às mãos das forças de segurança, e já não dos traficantes.

As mortes no percurso em terra somam-se ainda às que ocorrem na etapa seguinte da viagem, no mar. Em 2018 e 2019, morreram 1830 pessoas que partiram da Líbia em direcção a Itália, na chamada rota central do Mediterrâneo, a mais mortífera das três rotas mediterrânicas.

Em 2019, 9035 pessoas que seguiram irregularmente em barcos foram interceptadas no mar e devolvidas à Líbia. “Muitas vezes são levados e detidos em centros oficiais, onde sofrem abusos diários e condições terríveis. Outros acabam em centros não oficiais, ou seja, armazéns controlados pelas pessoas responsáveis pelo tráfico e contrabando que os sujeitam a abusos para conseguir dinheiro”, diz o relatório.

Um sudanês conta como esteve num destes locais por não ter dinheiro suficiente para pagar o que lhe era exigido para o resto da viagem, antes ainda de chegar a Trípoli. “Era terrível, nem sequer havia casas de banho. Tínhamos de fazer onde dormíamos. Havia pessoas a morrer à fome perto de nós.” Uma tentativa de fuga resultou na morte de uma série de pessoas do seu grupo — as primeiras por tiros, as segundas por tortura. “Puseram alguns de nós numa bacia com água e puseram correntes eléctricas. Queimaram plástico na nossa pele. Filmaram tudo e mandaram às nossas famílias. Durante quatro dias não tivemos comida nem água, tivemos de beber a nossa urina para sobreviver.”

Muitas pessoas morrem de doença nos centros de detenção, quer oficiais quer não oficiais. A tuberculose é uma das frequentes causas de morte. A guerra na Líbia também tem os seus efeitos, e dezenas de refugiados morreram em ataques aéreos contra centros. 

“O tratamento negligente dos refugiados e migrantes que vemos nestas rotas é inaceitável”, disse Bram Frouws, responsável do MMC. “Os dados que mostramos também deixam claro, mais uma vez, que a Líbia não é um sítio seguro para onde as pessoas possam ser mandadas de volta.”

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