A obsessão pelo racismo português

O racismo, mais do que tudo, condiciona as identidades e, consequentemente, condiciona as relações entre as pessoas e grupos. Uns com medo, outros com raiva, outros a querer vingança, outros fugindo, alguns evitando e mais uns tantos desprezando de forma nociva.

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PAULO PIMENTA

O porquê da minha obsessão com o racismo português? Não é por me querer associar a algum movimento político, não é por precisar da simpatia e dos rendimentos sociais do Estado, e não é, de todo, por ter algo contra quem não se assemelhe fisicamente a mim.

A minha obsessão é, na verdade, uma preocupação sobre a saúde, mental e física de todos os intervenientes, portugueses e imigrantes. O racismo não pode ser visto só como o resultado extremo, como uma morte, mas sim como a constatação de repetições localizadas e geracionais. Pessoalmente não conheci o racismo através da morte de alguém, mas perdi amigos e conhecidos numa sociedade que, de alguma forma, produziu condições degradantes e localizadas que condicionam, em alguns casos mortalmente, as pessoas.

Muitas vezes me perguntam o que é que eu já passei. Digo: já me chamaram macaco, já me mandaram para “a minha terra”, já se desviaram de mim nas ruas, já me pediram para abandonar a loja, já me recusaram serviços como o táxi, já me pararam no aeroporto para confirmar o meu passaporte, já me pararam nas estradas e ao andar a pé para ser revistado, já me disseram que o crioulo é língua de cão, já me disseram que o meu português é de preto, já tive namoradas e sogros que humilharam a minha cultura, já me disseram que sou muito preto, já me disseram que não querem trabalho de preto. Já me disseram de tudo e, pior, não me disseram tanto pois, para eles, eu merecia o desinteresse.

É claro que nem tudo é racismo, mas é o todo de uma experiência de vida que a mim e a outros fará a vulnerabilidade ser uma realidade. Mentalmente sinto-me forte, mas não posso mentir que há locais e momentos em que a minha auto consciência me condiciona a adaptar-me para a consciência que os outros possam ter de mim. Como qualquer negro português, a ancestralidade foi-me incutida como um fantasma pesado que tem a única finalidade de me fazer menos cidadão, ou mais ou menos português. Tudo isto pode parecer inofensivo, mas, que nem um negro morto pelas mãos racistas, a minha consciência de mim próprio consegue ter a audácia de me ferir. A minha identidade é uma incógnita, tal como a possível hostilidade a que me posso submeter na rua, seja com o desconhecido, a vizinha, o taxista, o polícia ou o suposto amigo.

O racismo, mais do que tudo, condiciona as identidades e, consequentemente, condiciona as relações entre as pessoas e grupos. Uns com medo, outros com raiva, outros a querer vingança, outros fugindo, alguns evitando e mais uns tantos desprezando de forma nociva. Todos sabem quem são, e todos aprendem que posição tomar já em tenra idade. Bem cedo aprendi a não me aproximar dos carros de desconhecidos, pois a minha mãe reprimia-me sabendo que eu podia ser confundido com o que era suposto um miúdo negro ser: ladrão. Nunca roubei por hábito (roubei um brinquedo com cerca de seis anos), mas também nunca deixei de ser preto. A minha condição estava no meu corpo e infelizmente ainda está, de certa forma.

O racismo não justifica a violência sobre ninguém, incluindo a da minha parte contra quem me faz lembrar que sou pejorativamente diferente. Não quero violentar ninguém, mesmo que o faça sem querer. O que quero é que a diferença étnica ou cultural seja finalmente aceite assim como ela é: como riqueza. O que menos devemos tolerar é o efeito do racismo nas pessoas, sejam elas de que cor forem. Não podemos aceitar a ideia de que as próximas gerações vão continuar a construir relações condicionadas pelo racismo e a sua hostilidade persistente. A minha obsessão e o problema com o racismo é corporal, emocional, identitário e social.

O racismo consegue ser mais forte do que qualquer praga pois ao existir ele está em tudo. Cada caso infeliz e particular, será sempre o espelho de nós como um todo. Só em conjunto, expondo todos os podres, poderemos superar esta doença portuguesa e global. Ninguém sairá imune por muito tempo com esta pandemia de séculos. Racismo é crime por nos violentar individual e socialmente.

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