Marxismo cultural e outros rótulos: a guerra cultural na luta político-ideológica
Os rótulos contestados são apenas a face visível de uma guerra cultural gramsciana em curso, onde triunfarão não as melhores ideias (nunca foi bem assim), mas as que conseguirem tornar-se hegemónicas.
1. Ao contrário do que poderíamos supor, provavelmente o terreno cultural tem sido ao longo da história mais vezes palco de uma luta político-ideológica do que a economia. Numa metáfora computacional que capta bem a sua importância, a cultura é nas palavras de Geert Hofstede o “software da mente”. A imagem que surgiu nos estudos de gestão internacional é poderosa e muito relevante politicamente. A cultura abrange um conjunto de regras de conduta, de formas de pensar e de valores, apreendidos através de processos de socialização e integrados na personalidade do indivíduo, os quais lhe permitem uma adaptação ao meio social e fornecem um código de leitura e interpretação dessa mesma realidade social. Por outras palavras, os códigos de valores e as regras de conduta social em que os indivíduos são socializados são fundamentais para a sua visão do mundo e naturalmente repercutem-se na sua visão política e na vontade de acção ou de inacção. Assim, o terreno onde a luta política pode ter resultados mais sólidos, sobretudo numa perspectiva de transformação social de longo prazo, é agindo sobre o “software da mente”, ou seja, a cultura/valores, e reprogramando esse sotfware ao sabor da visão pretendida.
2. Muitos não estão habituados a encarar a luta política assim, como travada no campo cultural. Há um entrave intelectual poderoso a essa percepção no Ocidente que data do século XIX. Entronca, em grande parte, no legado do pensamento de Karl Marx (1818-1883) e na maneira como as suas ideias marcaram a luta político-ideológica moderna. Resulta sobretudo do impacto da sua monumental obra, Das Kapital: Kritik der politischen Ökonomie/O Capital: Crítica da Economia Política (1867-1883), uma obra complexa e difícil de ler, fundamentalmente conhecida por interpostos autores. Através da vulgata do pensamento de Marx instalou-se a ideia de que a economia política é o terreno da luta político-ideológica que verdadeiramente interessa. Assim, quer os muitos seguidores e adeptos de Marx, quer também os seus muitos críticos e detractores, aceitaram esse terreno como o palco essencial da luta política. As marcas desse quadro mental originado por Marx — em rigor, mais a forma como as suas ideias se vulgarizaram — subsistem visíveis no mundo contemporâneo, seja nos marxistas/neo-marxistas, seja nos liberais/neo-liberais e noutras correntes de pensamento em rota de colisão com o marxismo. Para além dos méritos, este quadro mental oitocentista originou uma distorção: obscurece que uma parte fundamental da luta político-ideológica não se trava no terreno estrito da economia política (ou seja, naquilo que na linguagem marxista se chama a infraestrutura, grosso modo as relações de produção); essa luta ocorre, de forma autónoma, no amplo, difuso e difícil de identificar terreno cultural, com as suas inúmeras ramificações.
3. Talvez por Karl Marx estar exilado em Londres e demasiado absorvido com a luta de classes, especialmente as injustiças sofridas pelo proletariado às mãos da burguesia, tenha prestado pouca atenção, ou pelo menos subestimado, outros desenvolvimentos sociais e políticos do seu Estado de origem — a Alemanha. A realidade que Marx observou quando nasceu na Renânia-Palatinado (na época parte da Prússia Ocidental) e mais tarde em Inglaterra, já no exílio, ligada aos desenvolvimentos do capitalismo industrial, marcou certamente a sua personalidade e pensamento. Mas, como notado, uma outra importante transformação da sociedade alemã escapou-lhe — a Kulturkampf (“luta cultural”). Foi desencadeada após a unificação germânica de 1871, quando o chanceler alemão Otto von Bismarck pretendeu submeter totalmente a Igreja Católica ao poder do Estado. Bismarck, um protestante convicto, sempre desconfiou da lealdade dos católicos ao recém-criado Estado unificado alemão. Quanto aos católicos, ressentiam-se da predominância da Prússia protestante no Estado alemão unificado e opunham-se frequentemente às políticas de Bismarck. Claro que essa conflitualidade social e política não encaixava no esquema marxista da luta de classes, mas essa confrontação, que teve vários episódios com maior ou menor radicalismo de ambos os lados, envenenou a luta social e política na Alemanha nos anos 1870 e 1880. Foi uma linha maior de fractura político-ideológica que deixou sequelas profundas na Alemanha da primeira metade do século XX.
4. Todavia, foi na Itália dos anos 1920 e 1930 que o ideário revolucionário de Marx — mais rigorosamente, a concepção estrita de uma luta político-ideológica centrada no terreno da economia política — primeiro foi percebido como destinado ao fracasso no Ocidente. Coube ao intelectual comunista italiano, Antonio Gramsci (1891-1937), profundamente marcado pelo falhanço do biennio rosso (1919-1920), evidenciar, com perspicácia, as limitações dessa visão intelectual e política. Fazendo uma outra leitura da realidade, Gramsci mostrou a necessidade de refinar a teoria marxista em relação à importância da superstrutura (cultura, valores, instituições sociais e políticas, etc.). Nesse período particularmente conturbado da história italiana, grupos revolucionários socialistas-comunistas e anarquistas tentaram conquistar o poder, mas sem sucesso. Acabaram por ser derrotados pelo Partido Nacional Fascista de Mussolini, o que levou Antonio Gramsci à prisão e a sofrer a violenta repressão fascista. Aí elaborou um conjunto de manuscritos entre 1929 e 1935, postumamente publicados sob o título genérico de Quaderni del Carcere/Cadernos da Prisão. Para Gramsci, a explicação para a maioria das revoluções do proletariado terem falhado — à excepção da Rússia em 1917, cujas condições não eram comparáveis às da Itália, nem de outros países industrializados do Ocidente — encontrava-se na hegemonia cultural da burguesia. Assim, distanciava-se de uma ideia comum entre os marxistas ortodoxos, à maneira soviética, de que as contradições do capitalismo levariam à revolução vitoriosa da classe trabalhadora, a qual afastaria o capitalismo, transformaria as instituições sociais e políticas na lógica comunista. No Ocidente industrializado, a burguesia e o capitalismo mantinham o controlo da sociedade não só pelo uso da violência — dominavam o aparelho do Estado —, como, de forma mais subtil, pela sua hegemonia no terreno cultural, dada a sua supremacia nas instituições da sociedade civil. Como a classe trabalhadora absorvia a cultura e os valores burgueses, associando-os com o seu próprio bem, as revoluções proletárias falhavam. A alternativa de Gramsci era contra-atacar a hegemonia cultural liberal-burguesa, fazendo ruir primeiro a sua supremacia cultural.
5. A partir das décadas de 1960 e 1970, a emergente New Left (Nova Esquerda)/esquerda multicultural/esquerda radical — um movimento social, intelectual e político dos EUA e de outros países industrializados do Ocidente — absorveu gradualmente, ou convergiu na prática, com muitas das ideias de Antonio Gramsci. Tomou em mãos, desta vez com sucesso (não no sentido se fazer ruir a economia capitalista, mas também não foi esse o terreno escolhido), a tarefa de contrariar a hegemonia liberal-burguesa. Esse percurso da Nova Esquerda, que levou a luta político-ideológica para o terreno cultural, foi facilitado pela vontade de partes substanciais da esquerda intelectual e política no Ocidente pretenderem autonomizar-se dos partidos comunistas e da ortodoxia marxista-leninista soviética. A esquerda socialista-comunista tradicional pró-soviética continuava apegada — na tradição de Marx — ao terreno da economia política e do trabalho, mantendo aí plenamente a sua acção e luta político-ideológica (operariado contra burguesia, sindicatos contra patrões, etc.). Mas a Nova Esquerda ignorou largamente esses temas e passou a combater aquilo que numa linguagem gramsciana se chama a hegemonia cultural (os valores) da cultura liberal-burguesa. Causas apresentadas como de elevado valor moral — feminismo/igualdade de género, liberdade sexual/direitos dos gays, direitos das minorias étnicas, religiosas e/ou culturais, políticas de identidade, etc. — tornaram-se, assim, causas políticas e campos de estudos de transformação social. Na economia política esta divisão da esquerda facilitou a vitória, partir dos anos 1970/1980, da revolução da direita liberal/neo-liberal, que varreu com o pensamento marxista/neo-marxista (e keynesiano) da economia política, tornando-se aí hegemónica. Mas se a esquerda marxista-comunista pró-soviética colapsou em 1989, a Nova Esquerda conseguiu também triunfar à sua maneira. Varreu, ainda que de forma mais discreta e sofisticada intelectualmente, com muitas das ideias e valores tradicionais liberais-burgueses do terreno da cultura, criando uma contra-hegemonia cultural. Todavia, não conseguiu projectar essa influência na economia política, o que era a lógica original da estratégia de Gramsci — os liberais/neo-liberais como Friedrich Hayek, Joseph Schumpeter e Milton Friedman, são aí hegemónicos.
6. Hoje, com a luta político-ideológica instalada também no terreno cultural, há uma guerra de rótulos em curso. Uma parte importante da luta pela hegemonia cultural (e política) joga-se aí, pois os rótulos — tal como os slogans — condicionam o pensamento e conferem ao indivíduo médio uma leitura rápida da realidade, seja ela correcta ou incorrecta. É adequado designar os movimentos sociais, políticos e intelectuais da Nova Esquerda/esquerda multicultural/esquerda radical, sob o rótulo de “marxismo cultural”? É observável que esse rótulo é a designação preferida dos seus detractores à direita, provavelmente por ser a identificação fácil para o indivíduo médio e porque falar em marxismo, à direita, cria logo vontade de rejeicção de tais ideias. Todavia, estando, como já notado, o pensamento de Karl Marx centrado na economia política, não parece uma designação “científica” rigorosa, nem adequada. Mais próprio seria falar de esquerda gramsciana, pelas razões apontadas. Apesar de tudo, há dentro da Nova Esquerda intelectual e política quem veja esse rótulo como uma designação apropriada. É o caso de Douglas Kellner, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos EUA. Em Cultural Marxism and Cultural Studies/Marxismo Cultural e Estudos Culturais, um artigo publicado em 2003, notou que “muitos teóricos marxistas do século XX, desde Georg Lukács, Antonio Gramsci, Ernest Bloch, Walter Benjamin e T. W. Adorno até Fredric Jameson e Terry Eagleton, empregaram a teoria marxista para analisar formas culturais em relação com a sua produção, imbricações com a sociedade e a história, e o seu impacto e influências nas audiências e na vida social. Assim, as tradições do marxismo cultural são importantes na trajectória dos Estudos Culturais”. Mas deixemos esta guerra de rótulos, que nunca são totalmente neutrais, nem apenas uma questão de conhecimento ou de ignorância, para a luta política. Como sempre, aí cada um escolherá o que mais lhe convém. Vejamos como uma direita que não é a usual entrou, ultimamente, no terreno da guerra cultural, tentando replicar, embora sem sofisticação intelectual (pelo contrário, é grosseira), a estratégia gramsciana.
7. No ponto em que estamos, a história não acabou com a hegemonia da direita liberal/neo-liberal na economia e a contra-hegemonia da Nova Esquerda no terreno cultural, ainda que esta última numa “guerra de posições” e sobretudo à defesa. É verdade que esse impasse deu uma sensação de acalmia, de fim das ideologias, sobretudo após o final da Guerra Fria e a emergência da actual globalização. Uma análise gramsciana mostra como o sucesso de ambas é palpável. Muitos dos que se vêem, a si próprios, como de esquerda, absorveram os valores da hegemonia da direita liberal ou neo-liberal na economia. Reproduzem acriticamente — ou seja, sem consciência da origem ideológica do que estão a dizer — as ideias de competitividade, inovação, empreendedorismo, etc., como suas e progressistas. Ao mesmo tempo, muitos dos que se vêem como de direita absorveram, também, os valores da hegemonia cultural da esquerda e reproduzem-nos como se fossem seus — liberdade sexual radical, direitos das minorias étnicas e religiosas, políticas de identidade — sem terem plena consciência de como se formou (ou deformou para os críticos) a sua visão do mundo. Para além da hegemonia conseguida fora das suas clientelas e beneficiários, ambas as ideologias criaram muitos descontentes. O maior detonador são os grupos e partidos da direita radical/populista/extrema-direita — há aqui uma guerra de rótulos para os qualificar, como ocorre com o marxismo cultural. Não são entusiastas das ideias liberais/(neo)liberais na economia e em muitos aspectos estão até contra estas, sobretudo quando se interligam com a globalização (aqui ameaçam a direita tradicional). Ao mesmo tempo, abriram guerra na frente cultural onde ameaçam a Nova Esquerda identificando-a como o seu maior inimigo ideológico. São identitaristas/nativistas/nacionalistas — uma outra guerra de rótulos abriu-se aqui. Mas os rótulos contestados são apenas a face visível de uma guerra cultural gramsciana em curso, onde triunfarão não as melhores ideias (nunca foi bem assim), mas as que conseguirem tornar-se hegemónicas.