Estado da Nação: debate “nasceu” em 1993 com Cavaco em queda e discurso de 43 páginas

O primeiro debate durou mais de cinco horas e só terminou quando o presidente do Parlamento, Barbosa de Melo, elogiou “esta nova experiência parlamentar”.

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Governo em peso no último debate do estado da nação da legislatura anterior Nuno Ferreira Santos

O debate sobre o Estado da Nação, na sexta-feira, entre o Governo e os partidos no Parlamento, foi criado em 1992, durante os tempos de maioria absoluta do PSD de Cavaco Silva.

O país vivia, então, em maioria absoluta do PSD, as economias europeias começavam a ser afectadas por uma crise, e a popularidade de Cavaco Silva, primeiro-ministro, davam os primeiros sinais de quebra, após oito anos de poder.

Este tipo de debate foi justificado como uma forma de fazer um maior escrutínio parlamentar à actividade do executivo, e inspirado, em parte, pelos discursos do Estado da União dos Presidentes dos Estados Unidos, numa altura em que eram escassos os debates com o chefe do Governo na Assembleia da República.

Alterado o regimento da Assembleia em 1992, depois das queixas dos partidos da oposição de que Cavaco ia poucas vezes ao Parlamento, o primeiro debate do Estado da Nação, porém, só aconteceu no ano seguinte, em 1 de Julho de 1993.

O primeiro debate

Cavaco Silva criticou o “pessimismo decadentista de alguns políticos com responsabilidades” por quererem incutir na sociedade uma “descrença fatalista”.

Aqueles que se recusam a reconhecer a transformação positiva de Portugal” e fazem “cenários negros, miserabilistas ou fatalistas, geralmente por motivos de mero jogo político”, estão a cometer “um acto de miopia”, acusou.

O chefe do Governo usou números e mais números, fez comparações estatísticas entre 1992 e 1985, ano em que o PS estava no Governo em aliança com o PSD, no famoso bloco central. O número de jovens a estudar no ensino superior, por exemplo, duplicou.

O discurso inicial de Cavaco tinha 43 páginas e a primeira discussão sobre o Estado da Nação ocupou toda a tarde de trabalhos na Assembleia da República, das 15h25 às 20h50, mais de cinco horas.

O primeiro comentário do PS coube ao deputado António Almeida Santos que atirou uma “farpa”, entre aplausos dos deputados socialistas: “V. Ex.ª acabou de nos ler um discurso cujo tamanho só é ultrapassado pela decepção. Diria que, se a crise que assola o país fosse de palavras, teria morrido neste momento.

Cavaco respondeu com ironia e prestou-lhe “a homenagem”: “Ninguém consegue ser superior ao sr. deputado Almeida Santos em termos de manipulação das palavras”, a “tentar enganar, às vezes, a audiência.”

Mas a resposta de fundo, porém, foi dada pelo deputado António Guterres, secretário-geral do PS há três anos e que estava a dois das legislativas que deram a vitória aos socialistas. Cavaco, sintetizou Guterres, estava “duplamente derrotado”, perante “si próprio e perante o país”.

“Em primeiro lugar, pelo contraste gritante entre a realidade actual e o que, até há bem pouco tempo, nos prometia; entre as expectativas que criou com leviandade para se fazer eleger e o sentimento generalizado de frustração que, hoje, aflige os portugueses. (...) Mas derrotado, também, por ter perdido as duas principais batalhas da vida portuguesa: a batalha económica e social do emprego e a batalha política da transparência”, disse.

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Debate de 2019

António Guterres acusou ainda o primeiro-ministro de ter esgotado “o crédito que os portugueses lhe manifestaram”, demonstrando que “só sabe navegar com o vento a favor”.

Ainda tem dificuldades em admitir que se engana, mas, seguramente, já começou a ter dúvidas”, ironizou.

Geografia parlamentar

O Parlamento em 1993 era muito diferente do actual e os protagonistas também.

Na extrema-esquerda do hemiciclo sentava-se Mário Tomé, militar de Abril e eleito pela UDP, partido mais tarde na origem do Bloco de Esquerda. Do lado oposto, Manuel Sérgio, professor universitário, fazia o seu único mandato pelo Partido da Solidariedade Nacional (PSN), o chamado “partido dos reformados”.

No hemiciclo sentava-se ainda Diogo Freitas do Amaral, que nessa altura já tinha abandonado o CDS, e era deputado independente. 

No PSD, o líder parlamentar era Duarte Lima, mas neste debate intervieram também Rui Rio (actual presidente do partido) e José Pacheco Pereira, vice-presidente da bancada.

Na bancada do CDS sentavam-se Adriano Moreira, mas também um jovem deputado, António Lobo Xavier, que elogiou o “bom hábito democrático” do debate do estado da nação, e sublinhou alegados excessos do cavaquismo em 1993: “[Foram] as forças de bloqueio, foi a querela inútil e perigosa com o sr. Presidente da República [Mário Soares], foi a proeza extraordinária de por os magistrados em greve, foram as crispações a propósito da corrupção, do segredo de Estado.”

À esquerda, o PCP teve como figuras do debate Carlos Carvalhas, que já sucedera a Álvaro Cunhal como secretário-geral do PCP, mas também Octávio Teixeira e João Amaral, que mais tarde se tornou crítico. 

Carvalhas, por exemplo, questionou o primeiro-ministro sobre se reconhecia ou não que, “fruto de uma política errada e injusta, há hoje milhares de reformados numa situação dramática” ou que “há hoje milhares de jovens que não encontram saídas profissionais”.

E Freitas do Amaral perguntou se Cavaco poderia indicar “quais são as grandes linhas da reforma do Estado providência que as circunstâncias impõem”, anotando a crítica feita ao Governo de que “existe um excessivo economicismo nas políticas sociais”.

Nova experiência

O debate durou mais de cinco horas e só terminou quando o presidente do Parlamento, Barbosa de Melo, elogiou “esta nova experiência parlamentar”.

O regimento da Assembleia da República estipula que o debate do estado da nação se faça “numa das últimas 10 reuniões da sessão legislativa”, que é “iniciado com uma intervenção do primeiro-ministro sobre o Estado da Nação, sujeito a perguntas dos grupos parlamentares, seguindo-se o debate generalizado que é encerrado pelo Governo”, transmitidos em directo pela ARTV, o canal do Parlamento.

Este tipo de debate não está em questão, numa fase em que o PSD propôs e o Parlamento está a discutir reformas de funcionamento que passam pela redução do número de debates com o primeiro-ministro

Ao longo dos últimos anos, passaram pela sala das sessões de São Bento para discutir o estado da nação seis primeiros-ministros, António Guterres, José Sócrates e António Costa, do PS, e Cavaco Silva, Durão Barroso e Pedro Passos Coelho, do PSD.

Este figurino perdeu, porém, relevo após novas mudanças no regimento em 2007 e com a introdução, primeiro, dos debates mensais e depois dos debates quinzenais, em que os partidos vão confrontando, de duas em duas semanas, o primeiro-ministro com os temas políticos de actualidade, o mesmo que está agora a ser questionado pelo PSD e pelo PS.

O debate sobre o Estado da Nação com o primeiro-ministro, António Costa, o primeiro da XIV legislatura que começou em 2019, esteve agendado para as 15h do dia 22 de Julho, mas acabou por ser adiado para esta sexta-feira.