Censurar à portuguesa: um mau caminho para a esquerda
O texto dos 67 causa ainda incómodo por ser sonso e pouco frontal. Nesse sentido, estamos perante uma censura à portuguesa. A crítica à ida de Riccardo Marchi à RTP2 foi apenas um pretexto para condenar o seu trabalho e deixar um aviso.
Apenas quatro dias separam a publicação de A Letter on Justice and Open Debate, assinado por 153 intelectuais, maioritariamente norte-americanos, e Contra a higienização académica do racismo e fascismo do Chega, assinado por 67 académicos portugueses, maioritariamente de três instituições de Lisboa (Iscte – Instituto Universitário de Lisboa; Instituto de Ciências Sociais; e Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa) e uma de Coimbra (Centro de Estudos Sociais). Os 67 criticaram um trabalho do colega Riccardo Marchi sobre o Chega e deram um puxão de orelhas à RTP2 por o ter entrevistado sem contraditório. Bruno Cardoso Reis descreveu o texto como “um gesto inédito” entre os intelectuais portugueses que marca a chegada a Portugal de uma cancel culture com origem nos EUA e assente na luta contra o racismo. Creio que é uma leitura redutora, porque a cancel culture tem outras dimensões (é contra todo o pensamento que se diz ser “politicamente incorrecto”).
Mais emblemático do que o texto dos 67, que em rigor ainda não levou ainda ao cancelamento de coisa alguma, terá sido o cancelamento em 2017 de uma palestra de Jaime Nogueira Pinto na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa por pressão da Associação de Estudantes dessa faculdade. E se fizer um exercício de memória, facilmente concluo que havia uma cancel culture avant la lettre no Portugal democrático. Será que já nos esquecemos da censura às entrevistas históricas de que foi alvo Herman José em 1988? E dos protestos e polémicas sempre que a RTP passava um filme com nus ou cenas sexuais, com o Pato com Laranja (1983) e o Império dos Sentidos (1991)? E da manifestação em 1985 na Cinemateca contra a exibição do Je vous salue, Marie, que foi encabeçada pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa e onde se gritou “vamos lá dentro e partimos aquilo tudo!”? A grande transformação que ocorreu em apenas uma geração não foi o aparecimento de uma cancel culture, mas a completa guinada que está a substituir no papel de censor os conservadores, reaccionários e a Igreja Católica pelos progressistas de esquerda.
Quem não aprecia André Ventura pensa sempre duas vezes se deve ou não criticá-lo ou pegar em polémicas que o envolvam, sabendo que está a entrar no jogo de um manipulador primário mas muito eficaz. Os 67 terão feito certamente esta ponderação. É agora óbvio que a carta teve um efeito imediato contraproducente, pois voltou a pôr Ventura debaixo dos holofotes (exemplos 1, 2, 3, 4, 5). O livro de Marchi não se transformará num sucesso de vendas por causa desta polémica, mas ganhou uma exposição inabitual entre nós para um trabalho de ciência política. O que terá levado pessoas tão experientes e inteligentes como Boaventura Sousa Santos, Irene Flunser Pimentel, Fernando Rosas, Miguel Vieira de Almeida ou Manuel Loff (menciono os mais mediáticos) a cometer este erro? Creio que uma ilusão e uma expectativa.
A ilusão é pensar-se que o que diz Marchi conta mais para fazer opinião por se tratar de um académico. Esta percepção só podia mesmo vir de outros académicos e devemos catalogá-la como um caso de deformação profissional. Vivemos em plena crise da autoridade do especialista, por causa das redes sociais que deram voz a toda a gente e são vias rápidas para a mentira, o juízo precipitado e o senso comum, por causa da fragilidade de jornalismo que tarda em encontrar um modelo económico, e também por culpa dos cientistas e outros académicos, que são responsáveis pela dificuldade de replicação de resultados científicos em muitas áreas e se deixaram apanhar em armadilhas montadas para revelar quão ridículas podem ser algumas publicações ditas científicas ou académicas. Assim, a preocupação do grupo dos 67 com o eco que poderá vir da “chancela científica” associada às opiniões de Marchi é exagerada.
Segundo percebi a partir do que foi publicado na imprensa, o trabalho baseia-se na recolha de testemunhos e não traz à luz factos ou documentação que nos obriguem a rever a opinião consensual de que o Chega tem ligações fortes e até oficiais a outros partidos de extrema-direita, que tem ou já teve membros nos órgãos oficiais ligados a partidos de extrema-direita e a movimentos neonazis e que as opiniões de Ventura sobre os ciganos são abjectas. Mas pode ser útil discutir se o racismo do Chega é genuíno ou, como sucede com outras “convicções” de Ventura, apenas instrumental. Como pode ser útil ensaiar, em 2020, a enésima discussão sobre o que é um partido fascista, como fez António Guerreiro com a elegância habitual a propósito deste episódio, para esclarecer se o Chega cumpre todos os requisitos ou é sobretudo um partido nacionalista e anti-sistema, como defende Marchi. Se eu equiparar o Front National do pai Le Pen ao PNR de José Pinto Coelho e o Front National da filha Le Pen ao Chega, estarei a branquear o Chega ou a indicar uma metamorfose óbvia? Uma taxonomia fina da (extrema-)direita não terá necessariamente de corresponder a uma higienização.
Apesar de o tom ser sóbrio e de as opiniões expressas sobre o Chega serem sensatas, o simples facto de o texto ser assinado por 67 colegas e de a crítica se centrar nas conclusões de Marchi causa incómodo alheio. Sessenta e sete contra um traz logo à lembrança uma boutade atribuída a Einstein e põe-nos quase involuntariamente a torcer por Marchi, que ganhou o charme do underdog. Ainda mais perturbadora é a conclusão de que as ciências sociais e humanas só podem ter a “chancela científica” se as conclusões não forem desconfortáveis para os académicos de uma certa esquerda.
Ana Lúcia Sá escreveu entretanto que “é importante situar esta carta num debate crítico e não no insulto ou no apelo à violência por trolls”, sendo muito revelador de que tivesse de ir buscar selvajaria do Twitter para, pelo contraste, poder sugerir virtudes inexistentes na carta, nomeadamente a vontade de debater. André Lamas Leite também conseguiu ver na carta dos 67 “graves erros técnico-metodológicos” ao trabalho de Marchi. Mas quais? Segundo a minha leitura, os 67 quiseram retirar a “chancela científica” a Marchi sem fazer qualquer esforço para atacar a metodologia ou a lógica que permitiu a Marchi tirar as conclusões que tirou. Quando se submete um manuscrito a uma revista científica, existe sempre uma revisão feita pelos pares, que deve centrar-se na metodologia, na lógica, na adequação dos modelos e nos eventuais abusos interpretativos dos resultados. Não é o que se lê no texto dos 67. Se eles fazem revisão por pares aplicando o mesmo tratamento que deram a Marchi, os críticos das ciências sociais e humanas ganham uns pontos. Felizmente, Cecília Honório (do Bloco de Esquerda) mostrou como a esquerda deve lidar com um trabalho que normaliza a extrema-direita sem que a crítica saia pela culatra: com rigor e inteligência, não ficando pelo processo de intenções, não deixando que as emoções suplantem a razão e sem cometer a asneira do texto colectivo.
Quando se mistura política e ciência, o resultado tende a ser mau. O eugenismo do século XIX e princípio do século XX, a frenologia de Lombroso e a genética de Lisenko são exemplos de pseudociência felizmente datados. Mas há ciência verdadeira que produz resultados que incomodam e censurar a actividade científica pelo grau de incómodo que as conclusões poderão provocar é uma negação do espírito académico.
Por exemplo, recorrendo à imagiologia do cérebro para estudar a resposta a uma feromona que se sabe causar uma resposta diferente no hipotálamo de homens e mulheres, demonstrou-se que as raparigas e rapazes adolescentes com disforia de género responderam não de acordo com o sexo que lhes foi atribuído à nascença mas segundo o sexo com o qual se identificam. E quando testados com um som que também produz respostas estereotipadas distintas em homens e mulheres, os rapazes com disforia de género responderam como se fossem raparigas. As conclusões destes trabalhos científicos são pertinentes e curiosas porque incomodam em simultâneo os defensores do “género como construção social” e os reaccionários que vêem a disforia de género como um distúrbio psicológico ou um capricho. Mas, desde que não haja atropelos à ética, estes dois trabalhos devem ser julgados pela qualidade da ciência e não os estados de alma que despertam em quem os for ler.
O mesmo se pode dizer de Um Discurso sobre as Ciências, aquele que é o trabalho mais citado do mais influente dos 67, o professor Boaventura Sousa Santos. Li o ensaio com prazer há décadas, mas muitos ainda se recordarão da crítica violenta do físico António Manuel Baptista, que viu no pós-modernismo do textos sinais de obscurantismo. Porém, apesar de todo o seu horror perante a obra, Manuel Baptista teve o bom senso de não arregimentar 66 físicos que depois tentassem o assassínio académico de Boaventura Sousa Santos.
O texto dos 67 causa ainda incómodo por ser sonso e pouco frontal. Nesse sentido, estamos perante uma censura à portuguesa. Percebe-se que a crítica à ida de Marchi à RTP2 foi apenas um pretexto para condenar o seu trabalho e deixar um aviso. Nem a RTP vai acusar o toque, nem o cidadão comum dará importância a este caso. Mas este texto, ainda que publicado na imprensa, terá um impacto fortíssimo no meio académico. Qualquer académico interessado em estudar os movimentos de direita vai pensar duas vezes se quer mesmo ser submetido ao mesmo tratamento dado a Marchi. Talvez tivesse sido essa a expectativa dos 67: condicionar as escolhas dos objectos de estudo que farão os académicos mais novos. Se vingarem, as consequências serão trágicas para o pluralismo na academia. Mesmo não vingando, as consequências são já péssimas para a esquerda, que se vê cada vez mais associada a impulsos censórios e fica vulnerável às críticas dos movimentos populistas de direita. Não se critica aqui a convicção da esquerda, mas a sua estratégia.
Este artigo expressa apenas a opinião do autor e não a da Universidade Nova de Lisboa