Uma em cada cinco peças de roupa que usamos tem origem em trabalho forçado uigur na China
Coligação de organizações de defesa dos direitos humanos exige que marcas como a Adidas, Lacoste, Nike, H&M, C&A, Zara, Ralph Lauren, Muji ou Calvin Klein deixem de recorrer a trabalho forçado dos uigures na província de Xinjiang, onde é produzido 20% do algodão a nível mundial.
Mais de 190 organizações de defesa dos direitos humanos, de 35 países, formaram uma coligação a exigir que grandes marcas internacionais cortem as ligações com os fornecedores ligados ao trabalho forçado de uigures, uma minoria muçulmana na província chinesa de Xinjiang.
Entre os abusos cometidos contra esta minoria, denunciam as organizações de defesa dos direitos humanos, está a detenção arbitrária em campos de trabalho forçados, tortura, separação forçada e esterilização das mulheres para controlar a natalidade.
Segundo os números revelados esta quinta-feira pela coligação, 84% do algodão produzido na China, o maior produtor desta matéria-prima a nível mundial, é proveniente de Xinjiang, tendo 20% do algodão mundial origem nesta província no Noroeste da China. Em muitos casos, o algodão produzido em Xinjiang é enviado para fábricas noutros pontos do mundo, particularmente países asiáticos como o Bangladesh, o Camboja e o Vietname, onde as roupas são fabricadas.
Entre as marcas visadas pela coligação estão a Gap, C&A, Adidas, Muji, Tommy Hiliger, Calvin Klein, Nike ou a tecnológica Apple. De acordo com estes grupos de defesa dos direitos humanos, pelo menos um em cada cinco produtos de vestuário, feitos de algodão, vendidos no mundo têm origem no trabalho forçado da minoria uigur em Xinjiang, onde as Nações Unidas dizem que vivem mais de um milhão de uigures em campos de detenção.
A coligação acusa ainda várias marcas de vestuário de continuarem a manter parcerias lucrativas com empresas chinesas, aceitando subsídios do Governo do Partido Comunista chinês para expandir a sua produção têxtil na região e para beneficiar do trabalho forçado dos uigures que são transferidos de Xinjiang para outras fábricas na China.
“As marcas globais precisam de se questionar a si próprias sobre o quão confortáveis estão ao contribuir para uma política genocida contra o povo uigur”, afirmou ao The Guardian Omer Kanat, director executivo do Projecto de Direitos Humanos Uigur, uma organização de defesa dos direitos dos uigures e de outras minorias muçulmanas, sediada nos Estados Unidos. “De alguma forma, estas empresas têm evitado o escrutínio quanto à sua cumplicidade com estas políticas. Isso acaba hoje”, declarou.
“As marcas e os retalhistas deveriam ter abandonado há muito tempo [a conivência com o trabalho forçado uigur], mas não o fizeram e é por isso que este apelo público é tão importante e necessário”, acrescentou à BBC Chloe Cranston, da Anti-Slavery International, uma das mais de 190 organizações envolvidas na campanha. “Não se trata apenas de acabar a relação com um fornecedor. É também sobre adoptar uma abordagem compreensiva”, concluiu.
O que está a acontecer em Xinjiang?
As denúncias contra o tratamento de Pequim aos uigures, uma minoria muçulmana que fala uma língua turca, na província de Xinjiang, não são novas, mas têm-se intensificado nos últimos anos.
Além dos já referidos campos de detenção, classificados pela China como “campos de reeducação” e que, segundo Pequim, pretendem ajudar os uigures a fugirem do extremismo islâmico – há um movimento separatista islâmico na província, que já levou a cabo alguns atentados – e a integrarem-se na sociedade, organizações de defesa dos direitos humanos e uigures no exílio denunciam uma perseguição religiosa contra esta minoria, que tem como objectivo impedir que os uigures falem a sua língua ou pratiquem a sua religião.
Para tal, denunciam estas organizações, o Governo chinês impôs um autêntico estado policial com recurso a vigilância electrónica e tem adoptado medidas para controlar a natalidade dos uigures e diluir a etnia. Deixar crescer a barba ou utilizar o véu islâmico, por exemplo, podem levar a detenções.
Nos últimos meses, aumentaram também as denúncias contra o trabalho forçado de uigures em fábricas. No início desta semana, o New York Times revelou que centenas de uigures estão a trabalhar em fábricas em Xinjiang para produzir equipamentos de protecção individual, nomeadamente máscaras, para consumo interno na China e para exportação para outros países.
Em Março, um relatório do Instituto Australiano de Políticas Estratégicas (ASPI) denunciou que milhares de uigures foram transferidos dos “campos de reeducação” para trabalhar em fábricas noutras regiões da China que fornecem produtos para 83 marcas internacionais de sectores como a tecnologia, vestuário ou automóveis, entre elas a Apple, Lacoste, Adidas, Ralph Lauren, Nike, Mercedes-Benz, H&M e Zara.
Resposta das marcas
O relatório da ASPI levou o eurodeputado francês Raphaël Glucksmann, da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), da qual faz parte o Partido Socialista, a lançar uma campanha a apelar a que as marcas parem de colaborar com as fábricas que utilizem trabalho forçado uigur, e a Adidas e a Lacoste anunciaram que vão proibir qualquer parceria com fornecedores ou retalhistas com origem em Xinjiang.
A Nike, por seu turno, disse que está a “conduzir diligências contínuas” com os seus fornecedores na China para “avaliar potenciais riscos relacionados com o emprego de uigures ou outras minorias étnica”, enquanto a Apple afirmou que está a investigar as denúncias. “Não encontrámos provas de trabalho forçado nas linhas de produção da Apple, mas vamos continuar a monitorizar a situação”, afirmou a empresa norte-americana em comunicado, citado pela BBC.
Outras marcas, como a C&A, garantem que não trabalham com qualquer fábrica da província de Xinjiang, enquanto a PVH Corporation, dona da Calvin Klein e da Tommy Hilfiger, disse que não adquire peças acabadas provenientes da região e garantiu que vai interromper o seu relacionamento com quaisquer fábricas que produzam vestuário ou tecidos em Xinjiang nos próximos 12 meses.
A H&M, inicialmente, disse que não mantinha relação com qualquer fornecedor daquela região chinesa, mas, num comunicado enviado ao Guardian, referiu uma relação indirecta com uma empresa a operar na região e garantiu que não irá comprar mais algodão e que vai rever esta parceria. Já a Muji confirmou que utiliza algodão da província do Noroeste da China, mas garantiu que o material vendido pela marca não está ligado a trabalho forçado.
A campanha da coligação de mais de 190 organizações de defesa dos direitos humanos surge numa altura em que os Estados Unidos têm aumentado a pressão sobre a China devido ao tratamento da minoria uigur, tendo emitido uma directiva destinada às empresas a alertá-las para os riscos da ligação ao trabalho forçado em Xinjiang.
Washington impôs também sanções a várias figuras do Partido Comunista chinês devido à violação dos direitos dos uigures, uma acção que teve resposta imediata de Pequim, que retaliou com sanções contra senadores republicanos.