A Boa Feminista escreve uma carta à filha

Pondo tudo em pratos limpos, o facto é que A Boa Feminista é um contraponto da boa rapariga, que é uma boa filha, que se torna uma boa esposa, e depois, invariavelmente, é “a” boa mãe, “a” mãe perfeitinha…

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tam wai/Unsplash

Não, as palavras que se seguem não se definem como um pequeno textinho epistolar deixada “À Minha Querida Filha (para ler quando tiver 18 anos)”. É mais uma narração do falhanço de uma tentativa, aliás muito bem intencionada, diga-se de passagem. Mas o melhor que consegui foi mesmo deixar uma mensagem foleira numa garrafinha, entretanto lacrada, que reuniu mensagens de todos os amigos e familiares no seu recente primeiro aniversário (uma espécie de ficção de proximidade, que em tempos de pandemia não há muito mais que se possa fazer). Uma frase bonitinha, uma referência a uma musiquinha carregadinha de conteúdo — “ouves a Roberta a cantar? Like a Bridge over troubled water, I will ease your mind…” — e zás! Missão cumprida! Mas o problema é que ficou mesmo tudo por dizer e não consegui passar da gracinha e do sentimentalismo armado em cool.

Pondo tudo em pratos limpos, o facto é que A Boa Feminista é um contraponto da boa rapariga, que é uma boa filha, que se torna uma boa esposa, e depois, invariavelmente, é “a” boa mãe, “a” mãe perfeitinha… A Boa Feminista não é boa em nada, excepto em ser uma feminista cheia de falhas e contradições. Uma dessas contradições, e talvez a maior de todas, é assumir que vai dar todos os privilégios à filha, aqueles que nunca teve, para além dos naturais que não são propriamente uma escolha.

No entanto, devo dizer, assumir que o meu doce de coco terá o caminho cravado de pétalas de rosa em vez de espinhos implica também assumir a difícil tarefa de ter que a alertar, constantemente, para os privilégios que não pode negar. Os que tem à partida e os que lhe são e serão dados. Já sei, já sei… o ar de escândalo que muitas mães vão fazer, bramindo os braços, abanando cabeças, apontando dedos porque coitada da criança vai ficar traumatizada. Não me parece que seja bem assim que se define o trauma, mas enfim, não sou lá grande especialista em psicanálise, ao contrário de TODAS as outras pessoas que têm filhos.

A mensagem a reter é: Check your privileges, pequena, check your privileges. O privilégio da pele branca, o privilégio da boa educação, o privilégio dos livros, o privilégio do amor incondicional, o privilégio da boa alimentação, o privilégio de tudo o que vais tendo garantido, ao contrário de tantas outras mulheres por esse mundo fora, ao longo dos tempos inenarráveis da violência patriarcal, da violência racista, da violência xenófoba, das violências inumeráveis (perdão pelo rol incompleto, mas embora seja preciso enumerar as diferenças que não deixam de se encontrar no mesmo saco, acabamos sempre por esquecer alguma que fica lá pelo fundo; o truque é não deixar de tentar).

Tens muitos privilégios para assumir e, de certa forma, contrariar. O que não aconteceu com Cora, Sojourner Tuth, bell hooks, Nina Simone, Bessie Smith, Toni Morrison, Kambili, Denver, Mila & etc., das quais te falarei em devido tempo. Tantas das quais estás tão longe mas tão próxima… Mas falar-te-ei também de Ana Hatherly, de Paula Rego, das Três Marias, de Carolina Beatriz Ângelo, de Mila, de Mariana... Sempre outras, tantas outras. Afinal, temos uma vida inteira para conversar. Uma carta começa, enfim, a parecer-me muito curta e eu preciso também de te explicar o que não sabia e que me fazia pensar que era meu o reino dos pobres. E se isto não se faz numa carta, muito menos numa mensagem enrolada num papelucho dentro da garrafinha lacrada, e tampouco de maneira fácil e leve. Mas também tens que começar a treinar o poder de encaixe. Sou capaz de te envergonhar uma ou outra vez à porta da escola.

Beijinhos, pequena. Até já.

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