Visita a uma família com covid-19

Não será esta uma tarefa para a polícia? Ou para os serviços de saúde? Mais uma vez, não há tempo, ninguém do lado de lá da linha compreenderá ou sentirá a urgência do caso e se as coisas correrem mal é o Pedro a acabar em tribunal e sem emprego. Assim lhe disse a chefe do departamento.

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PAULO PIMENTA

Pedro é um nome fictício, usado por razões óbvias para proteger a identidade do relator desta história. Chamemos-lhe, por conseguinte, Pedro.

O Pedro trabalha como assistente social na Margem Sul. Na última sexta-feira, o Pedro chegou a casa por volta das 21h depois de mais uma longa semana entre adolescentes em tribunal, famílias desalojadas, toxicodependentes, crianças em risco, entre tantas outras vidas a pedir, por favor, para serem salvas. Ou assim pensa o Pedro, sempre com o mundo às costas, talvez a principal razão para o levar a trabalhar, hoje, como assistente social. 

Estava o Pedro a caminho de casa quando uma colega sua, terapeuta da fala, lhe telefonou a pedir desculpa: tinha-se esquecido de lhe dizer que já esta farta de contactar uma das suas famílias, chamemos-lhe a família Cruz, e nada. A terapeuta trabalha com uma das crianças e há uns dias a mãe tinha-lhe enviado um email onde informava estar o menino infectado com o novo coronavírus, pelo que a família estava em isolamento. Querendo propor uma videochamada, a terapeuta contactou a mãe por telefone e email ao longo dos dias seguintes e nada, apenas o silêncio em resposta. Preocupada com o fim-de-semana à porta e sabendo ser o Pedro o principal responsável pela família, a terapeuta perguntou-lhe se não seria possível ao Pedro ir bater à porta da dita família, não fosse haver algum problema que justificasse a ausência de contacto. 

Sempre solícito, o Pedro disse imediatamente que sim, que ia a casa da família e o Miratejo não é assim tão longe. Com um largo sorriso, a terapeuta agradeceu, disse que lhe ficava a dever esta e desligou o telefone imediatamente antes de o Pedro pensar: “O miúdo tem covid-19? Mas se eu nunca visitei nenhuma família com covid-19..?”

Aqui começam os problemas. Com um bebé de três meses em casa e a mulher em licença de maternidade, a última coisa que o Pedro quer, tal como todos nós, é contrair o vírus e infectar quem lhe é mais querido. Mas o Pedro não anda com máscara. No serviço não há dinheiro para máscaras ou viseiras e as máscaras que o Pedro comprou estão no escritório, agora fechado. É preciso agir rapidamente e não há tempo para ir a casa. E o Pedro tem medo. Tem medo do que não quer encontrar, de não saber o que vai encontrar. 

Mas não seria esta uma tarefa para a polícia? Ou para os serviços de saúde? Mais uma vez, não há tempo, ninguém do lado de lá da linha compreenderá ou sentirá a urgência do caso e se as coisas correrem mal é o Pedro a acabar em tribunal e sem emprego. Assim lhe disse a chefe do departamento. 

Telefonar à chefe de departamento? A chefe está em casa desde Abril, tem asma e faz parte do grupo de risco em caso de infecção pelo novo coronavírus, há três meses que ninguém sabe dela, parece que está em isolamento no monte alentejano da família e não é à sexta-feira que se incomoda alguém. 

O Pedro está sozinho. Há três meses que o Pedro está sozinho e sozinho o Pedro toma decisões. Nem todas acertadas, sendo os erros rapidamente seguidos de um email da chefe a acusar e culpar. Nessas alturas, a resposta é rápida e eficiente. Mas como o desemprego grassa e o Pedro não tem interesse nenhum em perder o seu, o Pedro come e cala, como todos nós comemos e calamos, aliás.

Sexta-feira, faltam 20 minutos para as 22h e o Pedro estaciona o carro à porta da família Cruz. A família mora num segundo andar. Está às escuras, não se vê nada. Mas o Pedro não quer entrar e o Pedro não quer subir, nem pelas escadas nem no elevador, muito menos no elevador. O Pedro nem sequer quer tocar à campainha ou abrir a porta de entrada do prédio. O Pedro quer ajuda, alguém com quem falar.

Mal por mal, envia um WhatsApp à chefe a dizer que está à porta, a família está em isolamento e não tem respondido aos contactos. Sim, a chefe vê, mas não responde. O Pedro espera cinco minutos, mas não há resposta. Nem um “Não entres” derradeiro nem um simples “OK”. O problema é seu.

E é isto o que agora mais o incomoda. Já não é a família, já não é a doença. A família está bem, na medida do possível, pois claro, continuam em isolamento, os sintomas do menino são ligeiros e pedem desculpa por não terem ligado de volta, e o Pedro, que os viu do fim do corredor, já está a caminho de casa.

Não. O que mais o incomoda é a falta de apoio, é a solidão, as decisões que se tomam sem ajuda nem conselho e das quais tantas vezes dependem as vidas de tantos. É a displicência das chefias, mais preocupadas com o seu umbigo, mas sempre prontas a apontar o dedo, é a sua ingenuidade e a vontade constante de justificar a existência na ajuda ao outro quando, claramente, ninguém quer saber.

A terapeuta não quer saber, foi jantar fora com as amigas, a chefe não quer saber, tem asma e há três meses que não trabalha, a polícia e os serviços de saúde não querem saber entre a falta de mãos a medir ou a ausência de meios, caindo a inevitável responsabilidade de garantir a segurança do bem-estar social na boa vontade de quem tão bem conhece este meio e a importância do seu papel no auxílio aos mais necessitados. 

O que mais o incomoda é a sobranceria de quem se acha demasiado importante para ser importunado com questiúnculas de somenos interesse, ou assim dizem, é a falta de conhecimento de causa para não dizer o total desconhecimento da realidade de quem trabalha no terreno todos os dias, é a ausência de resposta. 

É esta expectativa de como, aconteça o que acontecer, temos de comer e calar se não queremos engrossar as fileiras do desemprego quando temos um recém-nascido em casa e uma família a sustentar. 

Aos poucos, o Pedro perde a inocência e os sonhos de uma vida mais a vontade de salvar tudo e todos. Mas não perde a vontade nem a esperança, apenas muda o enfoque para o sorriso de uma criança e o amor de uma mulher, todos os dias à espera em casa. E são esses momentos de felicidade pura a alumiar-lhe o caminho.

Pelo menos até ao próximo episódio, até à próxima decisão de vida ou morte, quando o Pedro se vir novamente só num mundo às escuras sem ninguém para lhe dar a mão. 
 

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