Síria realiza eleições numa tentativa de mostrar normalização
Bashar al-Assad cumpriu 20 anos de poder, dos quais quase dez em guerra. Apesar de ter vencido, está longe de ter todo o país controlado e estável. No berço da revolução recomeçaram os protestos.
A Síria vai ter este domingo eleições parlamentares, quando o seu líder, Bashar al-Assad, acaba de comemorar 20 anos no poder e continua a ser visto por muitos como inevitável no futuro do país.
São as terceiras eleições depois de 2011, quando começaram os protestos contra o regime violentamente reprimidos e que se transformaram numa guerra com múltiplos actores. Decorrem apenas em parte do território, os 70% controlados pelas forças governamentais.
O regime tenta dar uma ideia de normalidade apesar de não controlar todo o país, de continuar a haver incidentes violentos a norte e sul, de enfrentar uma crise económica especialmente grave, com a pandemia da covid-19 a juntar-se a sanções e à inflação crescente. Os preços de bens alimentares duplicaram no ano passado, e mais de 80% da população síria vive em situação de pobreza (num país onde mais de 6 milhões são deslocados internos pela guerra, segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, além dos mais de 5,5 milhões que procuraram refúgio no estrangeiro)
Nas eleições, já se sabe que o vencedor será o partido Baas, de Assad, embora haja uma aparente concorrência dada pela existência de listas diferentes e candidatos independentes: os que têm mais sucesso são empresários (alguns deles estão sujeitos a sanções dos EUA e União Europeia).
As eleições realizam-se numa altura em que Assad marca 20 anos de poder, praticamente metade dos quais em guerra.
O oftalmologista que herdou o cargo do seu pai, Hafez al-Assad, apenas porque o irmão, destinado a ser presidente, morreu num acidente em Damasco, acabou por escolher esmagar pela força uma revolta contra si na onda das primaveras árabes, tornando-se num dos poucos sobreviventes (caíram os líderes da Tunísia, Egipto e Líbia).
Apoiado primeiro pelo Irão e depois decisivamente pela Rússia, o regime é um vencedor muito incompleto: controla 70% do território, e está no meio de um conflito que atraiu a presença ainda de jihadistas e cujo xadrez inclui ainda forças curdas e a Turquia.
Tensão entre aliados?
Há quem note ainda uma recente tensão entre os dois apoiantes de Assad: Rússia e Irão não têm tanto em comum e os interesses começam, de vez em quando, a sobrepor-se.
A Rússia tem, por exemplo, ficado imóvel quando Israel ataca posições iranianas ou do movimento xiita libanês Hezbollah, que é apoiado por Teerão, na Síria. Israel tem dito e repetido que não permitirá que estas forças ganhem um bastião perto da sua fronteira Norte e tem agido em conformidade.
Nas eleições, o diário árabe Asharq al-Awsat nota uma presença significativa de candidatos com ligações ao Irão, destacando três nomes com ligações a empresas iranianas ou conjuntas: Mohammed Hamsho, Fahd Mahmoud Darwish e Musan Nahhas, os dois últimos com cargos na Câmara de Comércio Sírio-Iraniana.
Por outro lado, nota o jornal sem especular sobre a razão, não há candidatos com ligações tão fortes à Rússia.
Mas tem sido de Moscovo que têm vindo mais sinais de força, por exemplo, no papel que possa ter tido o afastamento do primo de Assad, o influente empresário Rami Makhlouf (embora o caso seja multifacetado, Makhlouf tinha ligações ao Irão), e também sinais de descontentamento com o regime de Assad em media russos.
Esses sinais têm sido vistos sobretudo como um meio de pressionar o regime, porque Moscovo não tem um líder alternativo — sofre do paradoxo de quanto mais estabilidade permitiu ao regime, mais este pode dar-se ao luxo de ignorar as pretensões do seu apoiante.
Rússia e Irão têm ainda, além dos seus próprios interesses, diferenças no modo de agir. Um artigo recente na emissora pan-árabe Al-Jazeera notava que enquanto a Rússia está empenhada em fortalecer as instituições de segurança e militares formais, Teerão está a tentar formar forças alternativas.
Protestos voltam em Deraa
Um dos locais em que a influência russa mais se notou foi em Deraa, onde nasceu a revolução e onde, em 2018, foi Moscovo quem mediou um acordo diferente entre os combatentes anti-Assad e o regime: “Em Deraa não houve evacuações em massa depois de ser tomada pelo regime, o que quer dizer que os apoiantes da revolução ficaram e muitos combatentes também”, sublinhou o analista Ahmed Aba Zeid à Al-Jazeera, a propósito de violência recente na província.
Os antigos combatentes rebeldes foram incorporados numa nova força local, a Quinta Unidade de Ataque, que ajudou na luta contra o Daesh, mas quando os islamistas foram derrotados no Sul da Síria, recusaram juntar-se às forças do regime e ir lutar no Norte, em Idlib.
Terão 30 mil combatentes e respondem à Rússia, que é quem paga os seus salários, aponta o diário britânico The Guardian. São hostis à presença de combatentes iranianos e do Hezbollah.
O mesmo jornal traçava há dias um retrato do que se passa em Deraa, relatando novos protestos com palavras de ordem como “quem deixa o seu povo morrer à fome é um traidor” ou “vai-te embora Bashar”. “O culpado é o mesmo: o regime e a sua corrupção”, dizia um dos manifestantes, Abbass Munef, 30 anos. “Há 50 anos que roubam o país”, continuou. “A queda do regime é o primeiro passo para um futuro decente.”
O estranho nestas palavras e opiniões é serem ditas abertamente. Até agora, diz o Guardian, foram detidas meia dúzia de pessoas nas manifestações, mas não houve uma intervenção de grande escala dos serviços secretos (mukhabarat), como em 2011.
A existência da força é parte do motivo pelo qual há manifestações: “As pessoas de Deraa acreditam que estão protegidas do regime e das armas iranianas no local pela Quinta Unidade de Ataque. Muitas pessoas teriam sido presas se essa divisão não existisse. Nós não sairíamos à rua se eles não estivessem cá”, disse o activista local Ahmed Muhammad.
A Rússia vai permitindo que isto aconteça, por um lado porque também joga a favor do interesse de Moscovo de não haver forças iranianas a Sul perto de Israel, e finalmente, porque lhe dá aliados locais e uma aparência de que é possível algum protesto, desde que este não ameace o regime.
Aliás, para as eleições presidenciais do próximo ano, a Rússia preferiria ver uma corrida com algum grau de concorrência, diz o jornalista e analista Anton Mardasov na Al-Jazeera, e não uma votação como a de 2014, quando foi reeleito sem nada que se parecesse com uma oposição. A Rússia gostava de ver algo diferente para poder defender o regime de Damasco, apresentando-o com algum grau de legitimidade, no palco internacional.