A pandemia e a crise social: agir para uma sociedade justa
Pensar as alternativas é um imperativo de cidadania a que não nos furtamos e um exercício que continuaremos a fazer.
1. O mundo vai enfrentar, quando despertar do seu centramento no combate de saúde pública à pandemia da covid-19, a mais severa crise económica e social que alguma vez conheceu em tempo de paz.
A crise revelou problemas graves sem visibilidade pública, revelou fragilidades, mas também revelou as forças que permitiram responder melhor na proteção da saúde pública e na preservação do tecido económico e social.
As consequências económicas e sociais desta crise não são iguais para todos. Há uma profunda desigualdade socioeconómica e também territorial perante o risco dos efeitos da pandemia.
Não podemos, também, ignorar que a população mais vulnerável à pobreza se transformou. Hoje os mais pobres são os jovens, são as famílias com filhos e sem trabalho, são, por arrastamento, também as crianças.
Estão também a aparecer novas formas de desigualdade. A educação nos últimos meses em Portugal é um exemplo dessa emergência. Com a passagem do ensino presencial para o ensino online, a ligação de milhares de jovens ao sistema de ensino degradou-se fortemente, potenciando os mecanismos de reprodução geracional das desigualdades e neutralizando ainda mais os mecanismos de “elevador social” que a escola proporciona.
O país confrontou-se com dificuldades que subvalorizara ou desconhecia como a excessiva dependência económica do turismo, o atraso na transição digital e a enorme fragilidade de determinados sectores, acentuando as desigualdades tradicionais entre o trabalho manual/presencial e o trabalho intelectual ou nos serviços.
2. A crise demonstrou ainda, de forma inequívoca, a importância das políticas publicas. A solidez do serviço nacional de saúde em capacidades, recursos, organização e mobilização foi digna de reconhecimento e essencial na resposta imediata.
Na avaliação das políticas publicas de resposta à pandemia é importante diferenciar claramente dois períodos.
O primeiro, que ainda decorre, corresponde às medidas de urgência. De uma forma geral essas medidas tiveram um impacto positivo, visando salvaguardar as empresas e as famílias. No entanto, elas vieram a revelar-se insuficientes em algumas áreas, deixando alguns sectores da população mais desprotegidos.
O segundo período pressupõe a implementação de um programa de recuperação económica e social inclusivo que recupere a economia evitando erros do passado e inclua um modelo de proteção social que garanta a todos a efetiva concretização dos direitos sociais.
Para enfrentar essa desigualdade, o país necessita de definir uma nova estratégia integrada de redução da pobreza que cubra todas as situações de perda de emprego e cessação de atividade de pessoas em condições precárias e sem proteção. Por isso importam tanto as garantias de último recurso que complementem um RSI, que sem reformas e 25 anos após a sua criação, alvo de sucessivos cortes e desinvestimento, está enfraquecido e não consegue cumprir os seus desígnios, quer quanto à cobertura da população-alvo, quer quanto à adequação dos benefícios que proporciona.
Esse programa implica políticas integradas, que combinem políticas económicas e políticas sociais. Implica gerar sinergias que possibilitem abordar em simultâneo o triangulo do emprego, da defesa dos rendimentos e da concretização dos direitos sociais.
Implica igualmente uma reavaliação e recalibração das políticas sociais, de forma a assegurar o aumento da sua eficácia e eficiência.
Nesse contexto, a proteção dos que ficam privados de atividade (por via do desemprego, ou outra forma de fragilidade social) deve ser uma preocupação central. Trazer para a economia formal grande parte daqueles que anteriormente estavam dela ausentes deve constituir uma prioridade.
Os sectores mais afetados pela pobreza, como as famílias alargadas com crianças, os desempregados de longa duração ou as famílias jovens devem constituir a população alvo no centro da redefinição de uma política de proteção social de cidadania.
As instituições de ensino continuam a ser por excelência os espaços da igualdade de oportunidades. O desenvolvimento da política social ativa implica a articulação entre apoios sociais e a responsabilidade coletiva perante a próxima geração. Continua a ser prioritário combater o insucesso e o abandono escolar precoce, promover a aquisição de competências escolar e profissionalmente certificadas e suprir défices de qualificações que ameaçam as oportunidades de futuro, particularmente de crianças e jovens de grupos sociais desfavorecidos.
A questão do trabalho socialmente útil, mas que não é reconhecido pelo mercado, deve ser igualmente levada em conta na formulação das políticas públicas.
Temos igualmente de pensar as competências para o futuro. Sabemos que, dada a rapidez das mudanças, a capacidade de continuar a aprender ao longo da vida, em processos de educação formal ou não formal, é decisiva.
Outra das lições desta crise foi dada pelo poder local, que em muitas zonas do país soube intervir em tempo, mesmo para além da sua esfera atual de competências. Em vários domínios é importante aprofundar a descentralização, reconhecer a vocação das autarquias para execução de políticas de apoio social às populações e repensar a distribuição de competências e recursos entre os diferentes níveis do Estado.
A crise mostrou ainda a importância das respostas assentes em dinâmicas de solidariedade comunitária, em lógicas de parceria e de participação cidadã. Estas mostraram que os vários desafios que se colocam nos interpelam ao desenvolvimento de uma lógica de governança local partilhada e participativa. Esta lógica, que já existe e foi fundamental em várias zonas do país, não se pretende substituir ao Estado e ao papel fundamental das políticas públicas, antes o reforça.
3. É necessário ter em conta que, mesmo que o processo de recuperação permita repor a economia em funcionamento, tal não vai acontecer em todos os sectores de atividade à mesma velocidade e que serão necessárias medidas específicas para aqueles sectores que evidenciarem mais dificuldades na retoma.
A pandemia pode ter servido de despertador e pode ajudar-nos a pensar o mundo de modo diferente, a acelerar a transição energética justa, a repensar toda a orientação dos nossos modelos de exploração de recursos. Uma economia que trata as pessoas como mercadoria e o ambiente como externalidade não tem futuro e não serve o mundo.
A transição energética deve dar origem a um modelo de crescimento inclusivo. Pode bem ser que implique também uma redistribuição do trabalho, que participemos menos horas no trabalho com valor económico e mais em atividades de utilidade social, mas esse movimento não seria uma perda, antes seria uma conquista.
O Estado deve definir novas políticas públicas e dinamizar novas estratégias, contando com a produção de sinergias com as autarquias e o setor social, apurando o melhor da experiência portuguesa das últimas décadas e lançando uma nova geração de respostas.
4. Uma coisa é certa: seja qual for a velocidade de recuperação não é possível voltar para a situação existente antes do deflagrar da presente crise.
Num contexto de escassez de recursos é imperativo que seja colocado um novo nível de exigência, de eficácia, às políticas a implementar.
O papel da União Europeia é, nesse contexto, fundamental. Não somente pelos recursos que permitirá mobilizar, mas também pelas novas opções que poderá permitir vir a implementar.
A efetiva implementação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais e o caminhar numa redefinição de políticas fiscais mais progressivas e abrangente para combater a evasão fiscal são dois caminhos necessários.
5. Pensar as alternativas é um imperativo de cidadania a que não nos furtamos e um exercício que continuaremos a fazer.
Carlos Farinha Rodrigues
Eugénio Fonseca
Fernanda Rodrigues
Francisco Branco
Maria de Lurdes Rodrigues
Mário Caldeira Dias
Paulo Pedroso
Rogério Roque Amaro
Teresa Caeiro
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico