As estepes agrícolas da Península Ibérica têm perdido terreno mesmo em áreas protegidas
Estudo revela que, entre 2004 e 2015, o habitat estepário perdeu mais de 35 mil hectares em áreas protegidas pela Rede Natura 2000. Este habitat é crucial para a conservação de aves como a abetarda.
Com um relevo baixo e sem grande densidade de árvores, a estepes agrícolas são típicas na paisagem do Baixo Alentejo. Como nelas se recorre ao uso da agricultura tradicional de baixa intensidade, abrigam um conjunto de aves como a abetarda, que actualmente estão ameaçadas. Por isso, estas estepes são áreas protegidas da Rede Natura 2000. Agora, um estudo publicado na revista científica Biological Conservation, revela que, entre 2004 e 2015, as estepes agrícolas perderam mais de 35 mil hectares nas áreas protegidas pela Rede Natura 2000.
João Gameiro começa por explicar que, na Península Ibérica, a agricultura tradicional de baixa densidade tem sido feita durante milénios e que isso criou uma paisagem semelhante às estepes dos planaltos da Mongólia ou da Rússia. São as estepes agrícolas. Há também quem lhe chame “pseudo-estepes”, habitat estepário ou estepes cerealíferas. “São paisagens com baixo relevo, extensas e sem grande densidade de árvores, em que domina o cultivo de cereais como a aveia, o trigo e a cevada, ou pastagens para gado ovino ou bovino”, descreve o primeiro autor do artigo e investigador de doutoramento no Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c) da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
As características desta paisagem permitiram então que a actividade humana coexistisse com a conservação da natureza e, desta forma, que abrigasse aves que actualmente até estão ameaçadas, nomeadamente a abetarda (Otis tarda), o sisão (Tetrax tetrax) ou o francelho (Falco naumanni). Por esse motivo, vários desses locais foram designados como Zonas de Protecção Especial (ZPE) para a conservação de aves e integram a Rede Natura 2000, a maior rede internacional de áreas protegidas do mundo até ao momento.
Agora, avaliou-se a eficácia da Rede Natura 2000 na conservação das estepes agrícolas. Para isso, compararam-se imagens de satélite desde 2004 até 2015 em 21 ZPE (quatro de Portugal e 17 de Espanha), bem como as suas áreas adjacentes. As ZPE avaliadas em Portugal foram a de Campo Maior, a de Moura/Mourão/Barrancos, a de Castro Verde e a do Vale do Guadiana. Os resultados mostram que, entre 2004 e 2015, as ZPE perderam cerca de 35.600 hectares de estepes agrícolas.
Esses mais de 35 mil hectares perdidos poderiam abrigar mais de 500 abetardas, de acordo com os investigadores citados num comunicado do cE3c sobre o trabalho. João Gameiro acrescenta que os resultados indicam que a perda de estepes agrícolas foi 45% menor dentro das zonas da Rede Natura 2000 do que nas áreas adjacentes que não estão protegidas. “No entanto, é importante perceber porque ocorreram tão importantes perdas de habitat mesmo dentro das áreas protegidas. Estas perdas vão comprometer os resultados positivos dos anteriores esforços de conservação.”
Da conversão agrícola ao abandono
A principal causa para a perda deste habitat estepário tem sido a conversão da agricultura tradicional de baixa intensidade para a produção intensiva de olivais, vinha ou amendoais. “São [usos do solo] mais rentáveis e intensivos ao nível do uso mecânico, de pesticidas e fertilizantes”, realça João Gameiro. Outra das causas será o abandono agrícola, que tem ocorrido mais em Portugal do que em Espanha. Depois desse abandono, aquilo que acontece, devido à sucessão natural da vegetação, é que as estepes agrícolas se transformam em matos mediterrâneos.
“Todas essas transformações fazem com que o habitat deixe de ter aquela característica estepária e passe a ter uma vegetação mais elevada e dominada por arbustos ou árvores, que é inadequada para as espécies que hoje aí existem”, refere o investigador. João Gameiro avisa ainda que grandes conversões fora das áreas protegidas poderão tornar estas áreas em “ilhas estepárias”. “Isto vai reduzir a conectividade entre elas [as áreas protegidas da Rede Natura 2000], afectando a visibilidade e capacidade de dispersão das populações [de aves como a abetarda], o que é especialmente relevante face às alterações climáticas.”
Além do cE3c, este trabalho teve a participação de cientistas do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto, do Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa e da Universidade de East Anglia (no Reino Unido). No seguimento das conclusões do estudo, esta equipa sugere que o sucesso da Rede Natura 2000 pode ser afectado pela fraca aplicação e fiscalização da legislação associada às áreas protegidas, por incentivos insuficientes para se ter a cooperação dos agricultores (como as medidas agro-ambientais) e por medidas de conservação não que sejam pensadas a longo prazo.
“A solução seria aumentar os incentivos e garantir a adesão dos agricultores”, sugere João Gameiro. O investigador ressalva que também devem ser encontradas formas inovadoras de manter as práticas agrícolas tradicionais de baixa densidade e se preservar assim o habitat estepário. Por exemplo, o turismo de natureza pode ser desenvolvido e conseguir-se assim dinheiro para investir na preservação dos habitats. “Podia haver retorno a nível local e ser criado um ciclo potencialmente sustentável e duradouro.”
Falando na preservação deste habitat, ainda com estimativas preliminares, estima-se que o incêndio que deflagrou esta semana no concelho de Castro Verde terá consumido dois mil hectares da Reserva da Biosfera da UNESCO em Castro Verde, tal como disse à agência Lusa Rita Alcazar, do Centro de Educação Ambiental do Vale Gonçalinho e da Liga para a Protecção da Natureza. Estes dois mil hectares equivalem a 3% desta reserva, uma zona de protecção para aves como a abetarda. Rita Alcazar acrescentou que arderam também explorações agrícolas “absolutamente essenciais” para a biodiversidade da Reserva da Biosfera e lembrou que várias espécies estão dependentes dessa actividade agrícola extensiva, de sequeiro e de baixo impacto.
Algumas aves que foram afectadas pelo incêndio têm nesse local o seu núcleo principal. “Têm aqui o grande reduto, como é o caso das abetardas, dos sisões e, se calhar, as crias ainda não estavam voadoras e podem ter tido alguma dificuldade em fugir do fogo”, explicou Rita Alcazar, destacando ainda a existência de outros animais que podem ter passado por perigo semelhante, como o ouriço-cacheiro, as salamandras, as rãs e outros répteis.