A Boa Feminista aspira a casa

Serei uma boa feminista ao assumir decididamente o papel de mãe? Mas que papel vai ser este? Vou ser assim tão diferente de todas as outras mulheres que perpetuam os tiques patriarcais da sociedade nas suas relações, dentro de sua casa, dentro do seu corpo?

Foto
Unsplash

Desde que fiquei grávida que tenho na mesa-de-cabeceira (ou aquele espaço no chão ao lado da cama que nunca está vazio, já que móveis ‘supérfluos’ é um conceito que me é estranho) o livro Living a Feminist Life, de Sarah Ahmed. Pronto, já perceberam todos o que é que aí vem. Nada de extraordinário, portanto. Mas para mim, que decidi conscientemente trazer uma nova vida ao mundo, havia muitas inquietações que não me largavam, e virei-me para Ahmed como uma beata se vira para Nossa Senhora de Fátima.

Que inquietações eram essas? Coisas como: serei uma boa feminista ao assumir decididamente o papel de mãe? Mas que papel vai ser este? Vou ser assim tão diferente de todas as outras mulheres que perpetuam os tiques patriarcais da sociedade nas suas relações, dentro de sua casa, dentro do seu corpo? E como protegê-la desse mundo patriarcal e violento que me assustou, tolheu, encolheu, sem a encher de medo antes de viver tudo o que tinha que viver? Era mesmo isto que me assolava, e o pânico cresciam na exacta medida em que crescia o baby bump. Nada de roupinhas, carrinhos, leitinhos e afins… o que obviamente mudou assim que ela nasceu, pelo menos nos primeiros tempos de mãe incauta ("a realidade torna-nos humildes”, como ouvi há tempos numa conferência inspiradora feita por uma feminista “a sério”, daquelas que nos servem mesmo de modelo. E traz-nos de volta ao planeta terra, acrescento eu).

Mas voltando atrás, antes dos parênteses: decidi acreditar que sim, e que o espectro da má feminista que me assola frequentemente quando olho para o meu passado, infância e juventude não voltaria com muito mais força para me atormentar de forma quase ostensiva. Mas, e apesar de tanta incoerência neste percurso, não serei eu feminista? Isto foi o que pensei enquanto lia, embevecida e, confesso, com uma pontinha de inveja de tanta coerência, as reflexões de Sara Ahmed, enquanto procurava respostas naquele livrinho que parecia o pote de ouro no fundo do meu arco-íris de inquietações feministas.

A dada altura comecei a sentir uma certa estranheza por estar a procurar alguma luz nas palavras de uma feminista nascida em Inglaterra de pai paquistanês e mãe inglesa, emigrada na Austrália. Como é possível sentir, tantas vezes, ter mais em comum com mulheres, negras, americanas, muçulmanas, do que com a feminista do lado? Mas estou a ser um pouco moralista, claro (o que, de resto, é algo que as feministas fazem muito bem). O facto é que ela, Ahmed, sabia algo que me escapava, e começava a dar algum sentido que eu tardava em encontrar num feminismo que nem sempre me incluía. Porque encontrar o feminismo não é um momento “aha!" que surge uma vez na vida, é um processo. Um processo que incluiu não só encontrar sentido nas palavras e experiências das outras antes nós, mas um processo de olharmos para nós próprias e para as nossas próprias experiências e encontrarmos as palavras certas para falarmos sobre isso. E eu preciso desesperadamente encontrar essas palavras para responder às tais inquietações que, anos depois, ainda não me largaram.

E não acham que tem imensa piada o facto de me ter lembrado disto tudo enquanto aspirava a casa (obrigada, covid-19, pelas intermináveis oportunidades para ter momentos de inspiração). Mas também não há razão nenhuma para desperdiçar uma gargalhada, não é? E vêm mais a caminho, à medida que A Boa Feminista for explorando as suas incoerências. É só esperar pela próxima semana.

Sugerir correcção