Por uma rua mais segura
Estamos disponíveis para aceitar as implicações da transformação do espaço público para que enquanto peões nos sintamos mais seguros, e enquanto pais confiemos na autonomia dos nossos filhos para circularem com liberdade e em segurança? Esta é uma discussão que nos definirá.
Uma morte violenta das ruas de uma cidade, de forma brutal, é uma tragédia. Uma tragédia para as famílias e para os amigos. Morre sempre parte de nós. É por isso que enquanto sociedade devemos trabalhar para um objetivo muito claro: zero mortes nas estradas e nas ruas das cidades.
Zero mortes e menos 50% de vítimas graves até 2030 é a meta que Lisboa definiu por unanimidade política. É uma meta que se alcançará mantendo o caminho dos últimos anos: transformação do espaço público com mais espaço para todos; proteção dos mais vulneráveis (peões e ciclistas) no desenho urbano; execução de obras em centenas de arruamentos e praças, garantindo passeios confortáveis em paralelo com a calçada, rebaixando ou elevando passadeiras, ou melhorar cruzamentos. As tão faladas ciclovias funcionam como acalmia de tráfego e melhoram os atravessamentos pedonais – veja-se o caso da Rua Castilho ou Praça de Londres.
Lisboa busca novos caminhos: semáforos inteligentes com avisos para peões com deficiência visual; duplicação de radares de controlo de velocidade que contribuem para a redução da velocidade excessiva na cidade; mais de 300 novas câmaras de tráfego.
Porém, a ação de Lisboa continua limitada por uma regulamentação ausente que não responde às necessidades de fiscalização de trânsito por meios eletrónicos, incluindo a fiscalização automática dos semáforos vermelhos com recurso a câmaras. Por essa razão, a CML tem requerido essa regulamentação à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária e está pronta para avançar com a sua instalação mal seja legalmente possível.
Em 2017, 16 pessoas perderam a vida nas ruas de Lisboa. Em 2018, dez pessoas. Em 2019, oito pessoas. Destas, em 2019, uma foi por atropelamento. O índice de gravidade dos acidentes tem diminuído e isso dá confiança no caminho seguido. Ainda assim, foram 2800 acidentes com vítimas em 2019, 700 envolvendo peões. São quase dois atropelamentos por dia, o que nos renova a ambição de transformação do espaço urbano.
Um carro na cidade a 30 km por hora tem uma probabilidade de 10% de matar um peão em caso de atropelamento. Essa probabilidade aumenta para 80% no limite legal nacional em meio urbano de 50 km/h. Um carro a passar a 50km/h na rua onde mora, para a maioria dos leitores deste artigo, parecerá que vai depressa demais. E vai mesmo, se for uma normal rua de bairro de Lisboa. Não é sobre o que se controla, é sobre o que não se controla. Consegue um carro a 50 km/h reagir a uma criança que corre atrás de uma bola entre dois carros estacionados? Cientificamente, a resposta é não. Um carro a 50km/h precisa de 25 metros para se imobilizar, contra dez metros se for a 30km/h. Por isso a cidade está a mudar, com crescentes medidas de acalmia de trânsito e a transformação do espaço público.
As ruas onde moram as pessoas, as ruas de bairro onde os peões estão próximos da circulação automóvel, devem ter um limite de 30 km/h. Isto sem prejuízo da manutenção do limite de velocidade de 50km/h nas vias que asseguram as ligações de ponto a ponto na cidade, as mesmas que concentram mais de 70% do tráfego da cidade. Em Madrid, para dar apenas um exemplo, 85% das vias tem o limite de 30km/h.
Mas também precisamos de uma mudança de comportamento de todos: dos condutores e, claro, também do lado dos utilizadores vulneráveis. Mas neste ponto o tema não é equilibrado. Uma criança nunca passou no exame de código da estrada. Um condutor já, e sabe que tem de adaptar a condução ao ambiente que o rodeia.
O que está hoje em debate é uma questão de cidadania e da forma como vivemos em comunidade. Na história das cidades, o automóvel é um fator recente, mas que alterou de forma abruta o desenho urbano e tomou conta do espaço público. O que tem vindo a acontecer em todas as grandes cidades europeias, pressionadas pela massificação do carro individual e dos crescentes níveis de poluição e congestionamento, é um regresso a um modelo onde o peão assume um papel central com melhor espaço público, passeios mais largos e confortáveis e espaço para modos ativos de mobilidade.
Estamos disponíveis para aceitar as implicações da transformação do espaço público para que enquanto peões nos sintamos mais seguros, e enquanto pais confiemos na autonomia dos nossos filhos para circularem com liberdade e em segurança? Esta é uma discussão que nos definirá. Se for uma discussão em que rapidamente concordemos nos objetivos, mas onde a palavra “mas” sirva para encontrar sucessivas exceções e justificar que talvez tudo possa ficar como está, será um debate falhado. Não pode haver “mas”. Cada ação que façamos na direção certa é menos risco nas ruas.
As mortes somadas são uma estatística. Cada uma individualmente é uma tragédia intolerável. Por essa razão, a CML continuará a agir no caminho de uma maior segurança e melhor espaço público na cidade.
P.S.: Escrevo este artigo na sequência da morte violenta e prematura da Ana Oliveira. A mobilização da sociedade em torno deste caso é um sinal positivo da nossa maturidade democrática. Saibamos ter as discussões necessárias respeitando o luto da família e amigos, a quem transmito o meu profundo pesar.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico