Ainda o inenarrável exame de Português do 12.º ano
Para evitar a perda de tempo a muitos, que a partir daqui poderão deixar de me ler, começarei por dizer que considero esta prova uma das mais mal elaboradas, se não a pior, desde que, em 1997, os exames de Português foram universalmente repostos no final do Secundário. Passo a expor, muito sucintamente, os argumentos que me levam a esta tão grave acusação.
Eu já tinha decidido não escrever sobre este assunto que me parecia estafado e amplamente discutido, mas face ao que tem sido dito abundantemente e contradito na imprensa e nas redes, e porque o ensino do Português sempre foi o objecto mais importante da minha vida profissional, concluí ser minha obrigação contribuir para o debate, de uma forma fundamentada.
Para evitar a perda de tempo a muitos, que a partir daqui poderão deixar de me ler, começarei por dizer que considero esta prova uma das mais mal elaboradas, se não a pior, desde que, em 1997, os exames de Português foram universalmente repostos no final do Secundário. Passo a expor, muito sucintamente, os argumentos que me levam a esta tão grave acusação.
1. A Ilustre Casa de Ramires e Os Maias de Eça? É obra!
A infeliz opção da análise comparativa entre excertos dos dois romances de Eça – que deverão ser estudados em alternativa – é completamente descabida e configura um convite a respostas superficiais, bem como à convicção de que é indiferente ler uma obra na íntegra ou apenas uns textinhos. Afinal, os alunos apenas leram um dos romances e são aqui convidados a comparar atitudes de personagens que bem conhecem com outras de que nunca ouviram falar. Para quê, então, a leitura integral, perguntar-se-ão. Ler ou não ler equivalem-se?!
Parece óbvio este meu raciocínio, mas também ele é redutor. Na verdade, o excerto de A Ilustre Casa de Ramires é consideravelmente difícil quando desinserido do contexto e só é possível tentar (repito, tentar) compará-lo com o de Os Maias, pressupondo que foi esta a obra escolhida. E se não tiver sido? Algum aluno entenderá o sentido daquele excerto?
Consultem-se os hilariantes “critérios de correcção”, digo, “cenários de resposta”, e pasme-se. As considerações sobre “ociosidade” e “pro-actividade”, “procrastinação” (Ó Ricardo Araújo Pereira, olha o que tu fizeste!!!) e “sentimento patriótico” (deuses, onde é que eu já vi isto!!!) ou “incapacidade de criar modelos próprios”, leia-se sapatos de modelo nacional, são aterradoras e limitam-se a debitar uns mal digeridos apontamentos que circulam nos cadernos de preparação de exames ou em apressados manuais.
2. Isto não se faz ao Ricardo Reis!
Falar em “atitude racional” nos seis primeiros versos da ode “Sofro, Lídia, do medo do destino” é, no mínimo, não saber ler e, pior, é induzir os alunos em erro e obrigá-los a justificar uma falsidade. Releiam, por favor:
“Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.
Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.”
Racionalidade?! E como não tenho mais paciência para justificar tamanho disparate, tomo a liberdade de transcrever o comentário que, a propósito, a professora Teresa Rita Lopes, a nossa pessoana de excelência, deixou sobre o assunto, com um trocadilho ao agrado da sua inteligente ironia:
“Que pergunta irracional!!!”
E, já agora, o cenário de resposta, para se perceber melhor a dimensão da ínvia leitura que, estou em crer, se destinava a um outro poema de Reis que não este:
“Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
‒ o sujeito poético evidencia uma atitude racional ao intelectualizar as suas emoções/ao recusar (voluntariamente) a mudança/ao procurar a serenidade;
‒ o sujeito poético assume essa atitude racional devido ao sentimento de terror face à mudança/ao destino,que lhe provoca sofrimento.”
Sobre a interpretação da comparação final que, de resto, contradiz a dita racionalidade, nem vale a pena pronunciar-me.
3. Chegámos à América: escolha múltipla para textos literários
Que os testes à americana vieram para ficar já nós sabíamos. Que agora se estendam à análise de textos literários é que constitui a grande novidade deste ano. Eu só posso corar de vergonha!
E que dizer da alínea C, ainda sobre o poema de Ricardo Reis? Ah! Ah! Linda! Ora leiam a pérola que se segue e digam lá se isto não é importantíssimo para o conhecimento dos alunos e para o desenvolvimento das suas competências leitoras e do seu sentido crítico…
“nas características da linguagem e do estilo de Ricardo Reis evidenciam-se (…)
- a própria estrutura métrica da ode, na qual se verifica c) .
1. a existência de decassílabos graves conjugados com tetrassílabos agudos
2. a existência de versos todos eles com um número de sílabas diferente
3. a existência de elisões na escansão de todos os versos do poema.”
Que tal?!...
4. Breve, breve, que o Vieira, agora…
O que é “uma breve exposição sobre a importância que a crítica assume no Sermão de Santo António (aos Peixes), de Padre António Vieira”? Meia página? Uma? Duas? Ah!, ainda bem que são “dois aspectos”, menos mau, já é uma orientação, mas os “cenários de resposta” dos “critérios de avaliação”, mais uma vez, nos deixam de boca aberta, pela pobreza, pela revelação da ignorância camuflada de saber, na alusão a um aspecto que talvez não ocorresse a nenhum aluno: a “Nau Soberba”! Que alegria, que satisfação, é preciso inovar, surpreender os alunos, pois claro, que o exame é para isso mesmo, apanhá-los desprevenidos, os malandros!
5. A apreciação crítica do cartoon é moderna, fica bem!
Nota prévia – Sinto-me absolutamente à vontade para dizer que este grupo é um completo disparate, sobretudo porque, nos manuais “Plural” de que sou co-autora com Vera Baptista e a Paula Fonseca, a leitura de imagem, incluindo o cartoon, sempre tiveram um grande relevo. Fomos mesmo as primeiras autoras de manuais de Português que, no final dos anos 80, incluímos, de forma sistemática e antes de os Programas a consagrarem, a análise de pintura e outros textos iconográficos nos manuais de então, os “Sinais”.
Posto isto, quero lembrar que há um programa que está em vigor e que, tanto quanto sei, tem valor de lei; há ainda um documento posterior, que não revoga o programa, e que tem o nome, já de si menorizador, de aprendizagens essenciais. Vejamos:
O programa em vigor não prevê leitura de imagens, esse conteúdo constava do anterior programa, que especificava o caso concreto do cartoon, na sua dimensão argumentativa e crítica. O actual Programa prevê, em todos os anos – 10.º, 11.º e 12.º –, quer no domínio da leitura, quer no da escrita (os que para aqui importam), a apreciação crítica de “filme, de peça de teatro, de livro, de exposição ou de outra manifestação cultural").
As Aprendizagens Essenciais prevêem, no domínio exclusivo da Leitura do 10.º ano, o seguinte: “Ler em suportes variados textos de diferentes graus de complexidade dos géneros seguintes: relato de viagem, exposição sobre um tema, apreciação crítica e cartoon.”
Será legítimo que esta confusa “nota de rodapé”, não encontro expressão melhor, nas AE do 10.º ano e, repito, omissa no Programa, seja suficiente para justificar, em exame nacional, um texto de 200 a 350 palavras?! E como escrever um texto até 350 palavras sobre um cartoon intencionalmente simples? Afirmando banalidades e lugares comuns sobre a liberdade e o poder da escrita e como podemos estar presos e livres, etc., etc. (Acrescento, a título de curiosidade, que este excelente cartoon foi publicado no nosso manual do 10.º ano do programa anterior e que consideramos o artista Agim Sulaj um dos nomes maiores do cartoon contemporâneo).
No final disto tudo, o que mais nos pode aterrar – mais ainda do que a inexorável passagem do carro da vida a que alude Ricardo Reis – é ler no parecer da Associação de Professores de Português. (O sublinhado é da nossa responsabilidade):
“A prova está bem estruturada, cumprindo o preconizado quer nos documentos de referência para o nível de ensino a que se destina, quer nas orientações divulgadas pelo IAVE, relativas aos exames”.
(…)
“A mudança de género de texto a produzir no Grupo III, apreciação crítica em vez do habitual texto de opinião, é de saudar, dado que é um dos conteúdos, associado a descritores de desempenho deste ciclo de ensino, que não tem sido avaliado. Ainda assim, dado que, até ao momento, este género de texto não foi ainda objeto de avaliação externa (não estando ‘formatado’ e sendo caracterizado nos documentos curriculares lacunarmente, como ‘descrição sucinta do objeto, acompanhada de comentário crítico'), sugere-se que os critérios de classificação sejam alvo de cuidado redobrado por parte do IAVE e dos professores classificadores, por forma a não prejudicar os alunos”.
Finalmente, quero dizer que discordo daqueles que exigem os nomes do júri que produziu semelhante abrolho. Sou de uma geração que abomina apontar o dedo e não vejo qualquer utilidade em conhecer os responsáveis de tamanha leviandade. Até porque os responsáveis são, evidentemente, o ministro Tiago Brandão Rodrigues – para quem a Literatura, espero não ser um estorvo sem importância – e o seu secretário de Estado Adjunto João Costa, que é um homem das Humanidades, foi reitor da Universidade Nova e que deverá assumir uma responsabilidade acrescida neste desrespeito pelas aprendizagens dos alunos e o trabalho sério da maioria dos professores. Pelo menos, reconhecendo os erros que, acredito, ambos desconheciam, mas agora já conhecem.
É que com assuntos sérios não se brinca, e o ensino da Língua Materna e da Literatura – veículos insubstituíveis do desenvolvimento do pensamento e das competências comunicacionais, da compreensão do mundo e de si mesmo, do espírito crítico – é um assunto muito sério.