Muita bullshit a propósito do coronavírus
Ser especialista não se limita a possuir informação, mas a ter a experiência necessária em como usá-la.
Não existe na nossa língua uma boa tradução para a palavra “bullshit”. Talvez possamos usar “treta”, mas fica certamente aquém. No seu ensaio de 2005, On Bullshit (Da Treta, editora Livros de Areia, esgotado), o filósofo Harry Frankfurt afirma que a bullshit é uma das características mais salientes da nossa cultura. Um seu aspecto fundamental é que, sendo produzida sem grande consideração pela verdade, não tem de ser necessariamente falsa. Mas a bullshit é inevitável e a sua produção estimulada quando as circunstâncias requerem que alguém fale daquilo que não sabe. Frankfurt nota ainda que, apesar de não ser condição sine qua non, ser pretensioso é frequentemente uma das características de quem a profere.
Numa actualização do conceito, será publicado em Agosto um livro de dois autores norte-americanos, Carl Bergstrom e Jevin West, intitulado Calling Bullshit: The Art of Skepticism in a Data-Driven World, que aborda a profusão da treta na nossa era. Na introdução, os autores, que apresentam o livro no site de uma cadeira que leccionam na Universidade de Washington, invocam o conceito de bullshit moderno, que numa primeira aproximação toma a seguinte forma: a treta envolve linguagem, dados estatísticos, gráficos e outras formas de apresentar informação por forma a persuadir um leitor ou ouvinte, que o inundam e sobrecarregam, em flagrante desconsideração da verdade e da coerência lógica.
Não se trata, portanto, de comunicar com precisão ou de informar a audiência, mas sim de atolá-la. Nesta pandemia, o que não faltou na comunicação social foram indivíduos a abastecerem-nos de tretas, geralmente com o intuito de passar uma qualquer mensagem acerca do “medo”. Uns do medo causado por não actuarmos devidamente, outros do medo causado por actuarmos em exagero. Numa situação como a que vivemos, onde o desconhecimento grassa, o medo é uma reacção natural. Mas de pouco vale condicionarmos esse medo com base em falsidades, sejam elas produzidas por desconhecimento ou por má-fé.
Venho aqui mostrar alguns exemplos que pulularam entre nós, num mero exercício de verificação de afirmações. Tenho formação científica, mas não vou fazer aqui o rol do meu curriculum (que é público) pelo simples facto de que aquilo que mostro pouco mais necessita do que um pouco de tempo para aceder a fontes fidedignas: interpretações são interpretações, mas factos são factos.
Comecemos, então, pelos que nos querem convencer de que o medo era infundado. Nas páginas do jornal ECO, foi publicado um artigo de opinião intitulado “Um século de epidemiologia diz-nos outra coisa”, do informático André Dias (doutorado em modelação de doenças pulmonares). Haveria muito a dizer (e eu e outros já o fizemos aqui ou aqui), mas escolho dois exemplos apenas. Vejamos o primeiro: André Dias afirma que o SARS-CoV-2 está limitado na sua capacidade de propagação: “Mesmo que fosse muito mau, os vírus pulmonares são sempre lentos, nunca infectam mais de 30% das pessoas por ano, não importa o ‘como’ e ‘onde’”.
No mesmo artigo, André Dias afirma (e reitera) o seguinte: “Neste momento (a 23 de Março), não há nenhuns dados fiáveis para estimar a letalidade da covid-19, pode ser 0,001% ou 5%. Tudo isso é ruído. O número de infectados pode ser o que conhecemos ou dez mil vezes maior (sim, dez mil vezes).”
Ora, consultando os números de infecções a 22 de Março em algumas regiões, constatamos que, se houvesse um número de infecções dez mil vezes maior do que o conhecido na altura, é difícil descobrir “como” e “onde” é que isso não representaria infecções de “mais de 30% das pessoas por ano”.
Talvez só no Alentejo – no entanto, isso implicaria que já em Março haveria mais pessoas infectadas só nessa região do que o total de casos conhecidos hoje no país inteiro. Não precisamos sequer de entrar pela veracidade dos factos que André Dias reporta, nem temos de saber nada sobre doenças infecciosas ou epidemias: o autor não consegue sequer ser coerente com ele mesmo no seu próprio artigo.
E qual é o problema? É que estas afirmações são usadas para justificar o facto de supostamente estarmos todos a ser manipulados, e do medo e da reacção à doença não terem cabimento. É de notar que o autor, no mesmo artigo, afirma que a “Organização Mundial da Saúde devia responder criminalmente” pela sua falta de rigor, já que “é preciso um cuidado extremo, extremo, paranóico, com a divulgação de dados iniciais de surtos (…).”
O segundo exemplo é de como afirma que o colapso dos serviços funerários nas regiões mais críticas não se deveu às mortes excessivas causadas pela covid-19, mas sim ao facto de esta ser uma doença infecto-contagiosa e da burocracia a ela associada ter amedrontado e entupido os serviços: “Foi o mesmo medo que fez colapsar os serviços funerários em Bérgamo e Madrid e agora Nova Iorque. Os corpos têm de ser cremados por ser doença formalmente contagiosa de notificação (…).”
Ora este “facto” é fácil de demonstrar como falso. Em Nova Iorque os serviços oficiais decretam: “Os arranjos finais, sejam enterro ou cremação, deverão ter lugar o mais depressa possível.”
Em Itália, apesar de as cerimónias terem sido limitadas para evitar aglomerações de pessoas, a cremação de pessoas mortas devido à covid-19 não é obrigatória. E em Espanha, além de se poderem fazer enterros, as funerárias madrilenas chegaram a ir cremar mortos a 400 quilómetros da capital, provando que, mesmo distribuindo a carga de trabalho, estavam saturadas.
No Observador, houve quem insistisse neste tópico: Margarida Abreu (médica, especialista em Medicina Geral e Familiar), no mesmo parágrafo em que acusa a comunicação social de ser criminosa apresenta-nos dados falsos sobre a situação italiana: “Também a comunicação social, de forma criminosa e impune, manipulou a opinião pública. Metralhou a nossa casa com imagens de caixões atrás de caixões italianos, nunca explicando que tal acontecia em Itália porque todos os doentes com covid-19 eram referenciados para hospitais centrais, estando os regionais às moscas, e que não podiam ser transportados para os seus locais de origem, ficando as funerárias centrais com muito mais trabalho que o habitual, enquanto as regionais se encontravam desertas.”
Aqui deixo o relato de cardiologistas italianos da cidade de Crema (35.000 habitantes, de dimensão semelhante à Covilhã) à Sociedade Europeia de Cardiologia, quando se diziam exaustos: “A rede STEMI [que acode doentes com enfarte agudo do miocárdio] foi modificada na Lombardia para poder oferecer a melhor terapia tanto a doentes cardíacos como a doentes com covid-19: as ambulâncias distribuem os pacientes STEMI para os hospitais centrais que têm um número baixo de doentes com covid-19, enquanto os hospitais periféricos lidam apenas com emergências cardíacas internas, poupando recursos humanos, camas e energia para os doentes com covid-19).
Ou outro relato na primeira pessoa de Pavia (75.000 habitantes, do tamanho de Torres Vedras): “As enfermeiras dos serviços ambulatórios foram transferidas para as áreas Covid. Duplicámos o número de enfermeiras, mas temos o mesmo número de médicos para uma carga de trabalho que aumenta continuamente. Tal como em Bérgamo, é um cadáver atrás do outro. Não há espaço na morgue. (…) O problema não é só haver muitos pacientes, mas o facto de ser uma doença muito contagiosa e o seu curso longo, nos pacientes mais doentes. Uma vez entubados, os pacientes tipicamente requerem hospitalizações prolongadas.”
Prova-se que os hospitais regionais não estavam “às moscas”. E as funerárias regionais? Do relato de um agente funerário de Madone, uma localidade de 3500 pessoas entre Milão e Bérgamo: “A pressão é tanta que [o agente funerário] afirmou não ter conseguido dormir durante três dias na semana anterior e que depois teve um esgotamento nervoso. Começou a recusar trabalho e a desligar o telefone à noite para evitar receber mais chamadas.”
De facto, queixava-se não da morosidade do processo, mas sim do facto de não ter oportunidade nem tempo para fazer o seu trabalho com dignidade, já que os caixões são selados imediatamente na morgue do hospital, vestidos com aquilo que traziam na altura e sem possibilidade de serem devidamente preparados.
Se os há que dizem que o medo é infundado, há os que afirmam que, pelo contrário, deveríamos ter mais medo. “Aterrorizado” no seu “exílio” inglês, Pedro Caetano também acusa os órgãos de comunicação social de irresponsabilidade e leviandade ao dizerem que o caso português não é assim tão dramático, e que os dados têm de ser normalizados pela população de um país. Inspirado pelos gráficos do Financial Times, Pedro Caetano não só comete o tradicional erro de tirar conclusões numa situação que ainda estava em curso – é estranho um epidemiologista não saber que as epidemias demoram a propagar-se – como faz comparações totalmente erradas nas quais baseia a sua conclusão de que Portugal é um sítio perigosíssimo.
Olhemos para algumas regiões e sub-regiões – dados de 6 de Julho (número de infectados das fonte 1, fonte 2 e fonte 3).
Isto exemplifica como estas comparações fazem pouco sentido: Portugal, com os seus 10,2 milhões de habitantes, conta com muito menos mortes por milhão de habitantes do que a Lombardia ou a cidade de Nova Iorque, mas com mais do que as províncias da Campânia e Sicília juntas ou o estado da Carolina do Norte, zonas com populações sensivelmente iguais à do nosso país. Qual é, então, o lugar mais perigoso? Itália, os EUA ou Portugal?
A resposta é: não se pode comparar assim, porque depende da zona escolhida para normalizar os números. Ao padronizarem-se os valores desta forma, está a fazer-se uma média sobre uma zona geográfica inteira (um país) que pode conter muitas variações em sub-regiões. A comparação dessas médias torna-se tão menos significativa quanto as diferenças entre as dimensões e heterogeneidades dos países, sobretudo tratando-se a difusão de uma doença infecciosa de um fenómeno que está inevitavelmente ligado à geografia.
Faz também comparações com o Brasil – que exclamava estar cerca de 300% “bastante melhor que Portugal” em termos de mortes por milhão de habitantes – e com os EUA que são, dois meses depois, confrangedoras. No Brasil, com a tragédia em curso, as mortes por milhão de habitantes já superaram as portuguesas. Nos EUA, as mortes por milhão de habitantes já duplicam as de Portugal e, como vimos acima, não se pode usar a receita da normalização por fronteiras nacionais cegamente.
As comparações foram tão absurdas que na semana seguinte o autor já emendava a mão, sem, contudo, fazer uma autocrítica tão contundente como fizera aos políticos e órgãos de comunicação social na semana anterior, embora desta vez dizendo e repetindo que “prognósticos certos só no final do jogo”. Se calhar até devia voltar para Portugal, já que no condado de Oxfordshire onde habita as mortes por milhão de habitantes já vão em 779.
Não pude recensear tudo, mas há mais exemplos. E o que houve também foram casos de “voluntarismo científico” em que, sem acusar as autoridades ou jornalistas, se dramatizava ou desdramatizava a situação com raciocínios dotados de falhas graves.
Pedro Almeida Vieira, no PÚBLICO a 3 de Março, perguntava-nos: “O que nos dizem as mortes pelo vírus sobre a qualidade dos sistemas de saúde no mundo?” Nada, tendo em conta as falhas nas contas apresentadas no artigo, que os comentadores apontaram e que o autor acusou de promoverem uma discussão “estéril e academicamente desonesta”.
Houve ainda Jorge Buescu – um dos professores que tive de que mais gostei e me inspirou – que teve amplo espaço para nos passar a ideia de que as exponenciais crescem depressa. Habitualmente um divulgador científico ímpar, Jorge Buescu passou por cima de carreiras inteiras em modelação de epidemias para primeiro apelar ao fim da “corona-histeria” nas redes sociais e, dias depois, aterrorizar os seus concidadãos no programa televisivo Prós e Contras e na imprensa. A 15 de Março dizia-nos no Observador que daí a duas semanas teríamos 16 mil a 48 mil casos de covid-19; menos seria impossível porque já não íamos a tempo de impor medidas “à Italiana”. No entanto, as duas semanas passaram e nessa altura havia quatro mil casos, muito abaixo dos 16 mil.
Erros de modelação ou contas mal feitas são certamente situações distintas das que descrevi no início. Mas partir para o comentário como “uma questão de serviço cívico enquanto matemático” não deve sobrepor-se ao dever deontológico de reconhecer que ser especialista não se limita a possuir informação, mas a ter a experiência necessária em como usá-la. E se a nobre vontade de contribuir para o esforço de guerra existe, um cidadão não parte para a guerra sozinho, mas alista-se para servir sob quem está treinado nas lides.
Ninguém com integridade, carácter e respeito pelos valores democráticos advoga discursos únicos ou rejeita o contraditório. Se há coisa que esta pandemia nos mostrou é que até os especialistas mundo fora se contradizem e contrapõem, discordando uns dos outros. Mas partir para a discussão com factos falsos não só é insincero como muito pouco sério. Talvez os artigos de opinião na imprensa – e até este – devessem vir com um alerta, como os alimentos que contêm alergénios: “Este artigo pode conter factos falsos e não passou pelos trâmites do jornalismo.” Numa altura em que nos preparamos para avaliar a resposta a esta crise, e em que é fundamental identificar o que correu bem e o que correu mal, não precisamos de revisionismo nem de manipulação.
Um dos primeiros relatos científicos modernos da propagação de uma epidemia foi o de um dinamarquês, Peter Panum, que descreveu a propagação letal de um surto de sarampo nas ilhas Faroé em 1846. Quando em 1940, por ocasião da tradução do seu trabalho para a língua inglesa, Haven Emerson, médico de saúde pública pioneiro e comissário de Saúde da cidade de Nova Iorque, fez uma recensão da sua obra: “Aqui encontramos um modelo de dignidade, contenção, honestidade, precisão e estímulo intelectual: uma publicação rara e preciosa; 111 páginas de um tesouro da medicina (…), no qual as observações de um fisiologista e epidemiologista extraordinário, Peter Ludwig Panum, primeiramente revelaram a qualidade da sua escrita analítica. Do retrato no frontispício do devoto da verdade e da lógica até à tabulação final das complicações mortais dos pacientes de sarampo, não há uma palavra supérflua ou irrelevante.”
Aspiremos ao mesmo, deixemos as tretas.