Sefarditas II
Atento o seu valor simbólico e a importância no plano jurídico, seria fundamental antes de a alterar proceder a uma avaliação legislativa séria, rigorosa e objetiva dos efeitos da sua aplicação.
Sartre escreveu que os Judeus, na segunda grande guerra, foram considerados culpados e mortos apenas por do seu assento de nascimento constar que pertenciam à comunidade judaica. Nada mais do que tivessem feito ao longo das suas vidas interessava. A sua culpa resultava de terem nascido naquela comunidade e a única forma de a expiarem era morrendo.
Para combater o antissemitismo e outras formas de discriminação intoleráveis, os Códigos Penais – entre eles o Português – punem os “crimes de ódio”, em que o outro é agredido e, com frequência morto, apenas por aquilo que representa nos desagradar e dever ser eliminado por, por exemplo, ser Judeu. Importante legislação anti-discriminatória em razão da religião foi também adotada em Portugal, reconhecendo a liberdade de escolhermos a face do Deus a quem queremos orar.
No que concerne aos Judeus Sefarditas o caminho de abertura ao outro, que é (foi) Ibérico como nós o somos, acentuou-se com o pedido de desculpas apresentado por Mário Soares em nome do Estado Português, em 1989, pela injustiça que a sua bárbara e expedita expulsão representou no século XVII e pela alteração, em 2013, da Lei da Nacionalidade, permitindo o regresso de uma parte indevidamente amputada da nossa comunidade nacional. A lei afirmou os valores da abertura e do respeito pelo outro que contribuem para que Portugal seja considerado, no último V-Dem Report, como a 7.ª melhor democracia a nível mundial. Apenas entrou em vigor em 2015, após a sua regulamentação, foi pacificamente aplicada durante cerca de cinco anos e, agora, discute-se no Parlamento a sua eventual alteração.
Atento o seu valor simbólico e a importância no plano jurídico (é uma lei orgânica, de valor reforçado) seria fundamental antes de a alterar proceder a uma avaliação legislativa séria, rigorosa e objetiva dos efeitos da sua aplicação. Sabemos se houve um efetivo aumento significativo do número de pedidos de nacionalidade, ao abrigo desta alínea da Lei na sequência do expirar do prazo, para o efeito, na lei espanhola? Sabemos se as Comunidades Israelitas de Lisboa e do Porto estão a identificar devidamente (e nada faz pressupor que não o façam, uma vez que são compostas por Pessoas de Bem) quem é elegível para o efeito, dado que o Estado Português não dispõe da indispensável informação para o fazer? Sabemos se os cerca de 16.700 Portugueses que adquiriam a nacionalidade por esta via, não o fizeram apenas porque, tal como muitos de nós, têm orgulho e gosto em ser portugueses? Sabemos se os que optaram por residir em Portugal, estão a contribuir para o desenvolvimento científico, cultural e económico do país? Quais os efeitos da aplicação desta lei que permite a naturalização com base no sangue, face ao de outra, a dos “vistos gold”, que autoriza a permanência no território nacional com base no dinheiro? Qual a previsibilidade de seremos invadidos por centenas de milhar de portugueses que compartilham connosco parte do seu património genético, cultura e identidade nacional, se a Comunidade Sefardita é reduzida a nível mundial?
Sem a resposta a estas questões a alteração da lei será inoportuna, por ignorarmos se os generosos objetivos de uma lei aprovada por unanimidade no Parlamento foram ou não alcançados. Será sinal de uma governação impulsiva, ao sabor do vento, com prováveis consequências para a boa imagem que Portugal tem tido no plano internacional, em termos humanos, culturais e económicos. Uma quebra séria do princípio da confiança no poder legislativo e na previsibilidade das suas ações: hoje não nos apetece acolher os Judeus Sefarditas; amanhã as Testemunhas de Jeová; depois de amanhã os fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, os Católicos do pós-Vaticano II e os politeístas ciganos…
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico