Empresas loiras, com olhos azuis
Lançar a bóia apenas às empresas modelo – loiras, com olhos azuis – é ignorar a maior parte da economia nacional e atirar milhões de trabalhadores para um precipício.
Quando dizemos que a maior parte das empresas portuguesas são PME, nem sempre percebemos o alcance desta afirmação. Se dissermos que elas geram cerca de 60% da riqueza nacional e de 80% do emprego, já sabemos mais. E se, por fim, usarmos um termo de comparação em voga, estamos a falar de 300 vezes a TAP, em matéria de emprego; ou de 20 vezes, se compararmos o seu peso no PIB. Já consegue sentir o cheiro a napalm? Talvez isto ajude: de acordo com um inquérito recente, em resultado da pandemia, 47% das PME portuguesas perdeu mais de metade do seu volume de negócios e 34% recorreu ao layoff. Tic-tac, tic-tac, tic-tac.
É por isso que quando o ministro das Infra-estruturas se inquieta com uma potencial insolvência da TAP, as pernas do ministro da Economia deveriam começar a tremer. O que, aliás, não tem nada de mal: o medo é um dos maiores aliados da sobrevivência e precisamos desse instinto mais do que nunca.
O problema é que os sinais de que alguma coisa esteja, efetivamente, a ser feita para impedir a insolvência das nossas PME são escassos, para não dizer que são nulos. Maio terminou com as insolvências a crescerem 16%, face ao período homólogo. E, para junho, não são esperadas boas notícias. É certo que o governo prometeu criar um processo extraordinário de viabilização empresarial, mas, um mês depois, o silêncio é constrangedor. E o pouco que se conhece sobre o tema também não augura nada de bom.
A ideia de que o acesso a um processo extraordinário para evitar a insolvência esteja limitado às empresas “afetadas pela pandemia” faz soar todos os alarmes. Parece que o governo se prepara para estender a mão a empresas cuja dificuldade económica seja, exclusivamente, consequência da covid-19. Afastando, assim, as empresas que já atravessassem algum tipo de dificuldade no final de 2019.
Esta abordagem é o corolário da conveniente ficção de que vivíamos, no final de 2019, um momento de enorme fulgor económico, com empresas sãs e um futuro risonho. Até pode parecer, à luz do que temos hoje, mas é uma ideia errada, que se pode tornar perigosa.
Como bem sabe quem lida com o tecido empresarial português, os primeiros sinais de crise já se faziam sentir há largos meses e o perfil das nossas PME – a começar pela sua estrutura de capitais próprios – não era, propriamente, auspicioso. É por isso que lançar a bóia apenas às empresas modelo – loiras, com olhos azuis – é ignorar a maior parte da economia nacional e atirar milhões de trabalhadores para um precipício. No fundo, é como reservar ventiladores aos mais jovens e abandonar à sua sorte os mais velhos. Uma espécie de eugenia económica, que tem tudo para dar errado.
De resto, até a própria Comissão Europeia percebeu isso, quando admitiu alargar o Quadro Temporário de auxílio às micro e pequenas empresas que já se encontravam em dificuldades antes de 31 de dezembro de 2019, reconhecendo que estas empresas são cruciais para a recuperação económica da União e atendendo a que o impacto do atual surto veio agravar as dificuldades que já sentiam, por exemplo, no acesso ao financiamento.
A nacionalização de uma TAP falida é apenas a exceção que confirma a regra. Ou a triste confirmação de que, para empresas de sangue azul, não importa a cor do cabelo.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico