Quatro décadas de aceleração permanente
A maturidade do sistema científico nacional foi bem visível na resposta que foi dada aos desafios causados pela pandemia.
O ano era 1980. A empresa que viria a chamar-se Sinclair Research lançou no Reino Unido o ZX80, o primeiro computador disponível no mercado por menos de 100 libras. Ligava-se por cabo a uma televisão, tinha 1K de memória RAM e 4K de memória ROM, usada para guardar um sistema operativo rudimentar, um editor de texto e um interpretador de uma linguagem de programação, BASIC.
Pelos padrões actuais, o ZX80 era um brinquedo inútil. Não tinha ligação à Internet que, de qualquer forma, ainda não existia. A memória era um centésimo de um milionésimo da memória que vem instalada em qualquer telefone móvel ou computador dos dias de hoje. Não tendo disco, mas apenas um falível sistema de registo que usava um gravador de cassetes, não servia para guardar documentos, muito menos fotografias ou vídeos que, na altura, também não podiam ser obtidos, armazenados ou reproduzidos em formato digital.
Apesar destas limitações imensas, que na altura não eram assim tão óbvias, o ZX80 fez feliz uma primeira geração de apaixonados por computadores, entre os quais uma versão muito jovem do autor deste texto, que adquiriu um destes computadores mal teve essa possibilidade. Foi nele que escreveu os primeiros programas, desenvolvendo uma paixão pela computação que dura até aos dias de hoje. Dois anos depois entraria no Instituto Superior Técnico, onde teve contacto com outros computadores, maiores e mais complexos, que eram programados usando pilhas de cartões perfurados, deixados numa prateleira e recolhidos daí a uma horas, junto com a listagem dos erros ou – quando tudo corria bem – o resultado da execução do programa.
Foi também em 1980 que três jovens professores do Instituto Superior Técnico deram os primeiros passos para concretizar uma visão que tinham vindo a discutir há algum tempo, a de criar em Portugal condições para o desenvolvimento de tecnologias de electrónica e comunicações. José Tribolet, João Lourenço Fernandes e Luís Vidigal ambicionavam criar em Portugal as condições para o desenvolvimento de tecnologia electrónica de ponta, comparáveis às que tinham encontrado nas universidades onde tinham estudado, MIT, Southampton e Carnegie Mellon, respectivamente. Portugal estava na altura profundamente atrasado, em termos científicos, em praticamente todas as áreas do conhecimento, e as tecnologias de informação e comunicação não eram excepção.
Foi assim que foi criado, em 1980, o Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, o Inesc, uma associação privada sem fins lucrativos que teve como primeiros associados o Instituto Superior Técnico, a Universidade Técnica de Lisboa, os CTT e os TLP (Telefones de Lisboa e Porto). A missão do Inesc era a de criar capital humano altamente qualificado, desenvolver propriedade intelectual e executar projectos de investigação e desenvolvimento, para instituições públicas e privadas.
Nestas quatro décadas, o Inesc expandiu-se a nível nacional, e tornou-se numa rede de instituições centradas nos três grandes centros universitários do país, Lisboa, Porto e Coimbra. No seio da instituição desenvolveram-se dezenas de novas empresas, e foram criadas centenas de tecnologias que vieram a ser integradas nos produtos de muitas outras empresas. O modelo de parceria entre entidades públicas e privadas, do qual o Inesc foi pioneiro, é provavelmente um dos modelos mais eficazes para o desenvolvimento de tecnologias num ambiente académico, mas ciente dos desafios reais e concretos das empresas que estão no terreno.
Este modelo de instituição privada sem fins lucrativos, independente das universidades, mas a elas ligado, fez escola, e foi adoptado por dezenas de instituições, em todas as áreas da ciência. O sistema científico Português não seria o que é sem esta rede de instituições que têm uma autonomia e capacidade de iniciativa que são difíceis de conseguir em instituições públicas. Neste período, as universidades também se desenvolveram e fizeram grandes avanços na sua capacidade para investigar e desenvolver tecnologia. Mas, sendo o ensino superior de qualidade e a investigação assegurados em Portugal quase unicamente pelas universidades públicas, muito limitadas na sua agilidade (e pela única universidade concordatária, a Católica), continuam a ser essenciais as instituições privadas sem fins lucrativos dedicadas à investigação e desenvolvimento, o modelo que foi introduzido pela visão dos fundadores do Inesc em 1980.
Nas quatro décadas que passaram as tecnologias de informação e comunicação desenvolveram-se de uma forma exponencial, sob a pressão constante da Lei de Moore, uma observação feita em 1965 por Gordon Moore, que o número de elementos activos que é possível colocar num circuito integrado duplica a cada dois anos. Em 1983 o protocolo TCP/IP começou a ser usado em grande escala, dando origem ao que viria a ser a Internet. Em 1990, apareceram os primeiros fornecedores de Internet para utilizadores domiciliários (em 1995 foi criada em Portugal a IP Global, incubada no Inesc, e precursora da actual NOS). Em 1990 foi também proposto, no CERN, o centro Europeu de física de partículas, o protocolo que viria a tornar-se na World Wide Web (WWW), e em 1991 deram à luz as primeiras páginas Web. Em 1993 apareceu o primeiro navegador Web para uso do público, o Mosaic, que depois deu origem ao Netscape, que ainda hoje existe. Em 1998 aparece a Google, que se tornou rapidamente o motor de busca mais popular do planeta, resolvendo um problema que se estava a tornar cada vez mais difícil, como encontrar informação na Web. Em 2004 aparece o que veio a ser conhecida como a Web 2.0, incluindo a rede social Facebook, que tornou possível a utilizadores comuns criarem e disponibilizarem conteúdos na Web. Em 2005 apareceu o YouTube, em 2006 o Twitter e em 2007 o primeiro iPhone, que criou a possibilidade, que até aí não existia, de acedermos à Internet em qualquer local.
Tudo isto foi tornado possível pelas 20 duplicações previstas pela Lei de Moore nestas quatro décadas, que fizeram com que os sistemas sejam hoje cerca de um milhão de vezes mais complexos do que eram em 1980. Estes exponenciais avanços tecnológicos tornaram indispensáveis avanços paralelos na capacitação dos estudantes, cientistas e profissionais, algo que felizmente tem acontecido, muito como consequência do trabalho desenvolvido pelas instituições que foram criadas em Portugal nestas décadas.
A maturidade do sistema científico nacional foi bem visível na resposta que foi dada aos desafios causados pela pandemia. Centenas de organizações do sistema científico e tecnológico nacional responderam a estes desafios, desenvolvendo tecnologias de teste, tratamento e monitorização da doença, assim como aplicações que permitem manter a economia a funcionar limitando o contacto físico. Esta pandemia teria tido consequências muito mais dramáticas se Portugal não tivesse mudado, para melhor, nas últimas quatro décadas. Parte desta mudança deve-se, sem dúvida, à visão daqueles que, em 1980, criaram o Inesc, uma instituição que foi criada com o fim único de tornar Portugal um melhor local para viver e trabalhar, e cujo 40.º aniversário é assinalado com sessões no Porto (hoje, 6 de Julho), Lisboa (8 de Outubro) e Coimbra (23 de Outubro).