O Bando e Hélia Correia em busca do Eldorado
Miguel Jesus encena de maneira cruamente poética o drama dos refugiados, tentando quebrar a anestesia com que nós, os ocidentais, o vemos rotineiramente nos jornais e na televisão.
Eles vêm de longe. Vêm de onde já não podem viver à procura do lugar onde pensam poder ter uma vida. Às tantas há-de ouvir-se a palavra Europa. Antes, ainda antes de compreenderem que afinal não é o Eldorado, há um caminho. Um caminho maior do que a colina por onde descem, que os aproxima da estrada aonde não vão chegar. A estrada de onde são vistos como um espectáculo.
À beira da estrada, sentados de frente para o monte que se estende como um deserto, talvez percurso para o mar de permeio, os espectadores observam. De certo modo, é como se estivessem, como muitos europeus, à beira de uma praia na Grécia, ou de uma fronteira ainda mais distante e hostil, esperando que eles cheguem, entretidos com as suas atribulações, as suas razões, as suas motivações, as suas sensações, os seus desejos. Mais conscientes de como o caminho é longo, atribulado, perigoso, fatal para alguns; mais conscientes do que aqueles homens e mulheres que estão a caminho sem nunca se aproximarem o suficiente, frustrados de cada vez que vislumbram um carreiro, uma possibilidade de futuro que se esvai entre os sonhos de cada um.
Ao princípio era Um Bailarino na Batalha, o romance de Hélia Correia, vencedor em 2018 do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. Agora, passado pela dramaturgia e pela encenação de Miguel Jesus, a nova criação de O Bando surge como uma provocação. Como uma maneira de criar – ou pelo menos sugerir – a necessidade de um outro olhar. Esse olhar que a indiferença perante as rotineiras notícias de jornal ou as imagens da televisão anestesiou no espírito ocidental, antes de cristalizar como uma realidade sem solução em vez de criar uma nova forma – uma forma estranha ao cânone – e rever a maneira como lidamos com o outro e as suas maneiras de viver e de pensar e de ter fé. E de como os aceitamos, quando não simplesmente os repudiamos, ou abandonamos no limbo dos campos de migrantes e de refugiados.
Migrantes e refugiados não são uma novidade. Êxodos sempre os houve. Sempre circularam pessoas entre um lugar e o outro: às vezes levados por boas razões, outras por más, a maioria delas por necessidade, correspondendo ao desejo primal de sobrevivência que esta encenação apresenta de maneira cruamente poética, particularmente através da paisagem de cena de Rui Francisco e Clara Bento, a música de Jorge Salgueiro, e os desenhos de som e de luz imaginados por Miguel Lima e Nicolas Manfredini, mas principalmente pelo emocionante interpretação de Dora Sales, João Neca, Laurinda Chiungue, Maria Do Ó, Nicolas Brites, Nylon Princeso, Paula Só, Raul Atalaia, Rita Brito, André Mexia e Fabian Bravo.
São estes elementos, alinhados e cosidos com esmero, os criadores de um mecanismo cénico e plástico que a imaginação de Miguel Jesus tornou encenação como quem desnuda uma perplexidade humanista aparentemente esquecida pelos criadores do humanismo no seu medo do outro, no seu temor de outras socializações demasiadas vezes sinal de uma religiosidade estranha, como se não tivessem nada a ver com a desgraça dos que procuram realizar o desejo chão de viver dignamente. Entre nós e eles continuam a distância do mar e o obstáculo das fronteiras. E provavelmente assim continuará a ser. Entretanto sobra o desejo de mudança, infelizmente só de alguns mais dados ao lirismo.