A maka das estátuas em visão de Angola

As guerras das estátuas, como todas as guerras de memórias, transbordam atingindo figuras ou factos históricos recentes.

No final dos anos 50 do século passado, um grupo de estudantes do ensino secundário luandense estudava diversas insurreições, em busca de experiências úteis a planos locais clandestinos. Entre elas ganhou relevo a revolta anti-soviética da Hungria, onde um dos símbolos maiores era a destruição da estátua de Estaline por um operário equipado com maçarico de acetileno.

O que mais interessou a esse grupo de adolescentes foi o maçarico de acetileno, pois serviria para abrir portas de locais com armas. Porém, constatou-se ser equipamento quase impossível de dissimular, obrigando, assim, a procurar outras formas de rebentar fechaduras. Porém, ao ler sobre insurreições irlandesas voltaram as estátuas, desta vez inglesas em Dublin, já terminado o domínio britânico, motivo de descontentamento irlandês. De novo ninguém se focou nas esculturas em si, mas no facto de alguém, sem deixar rasto, ter sabotado todas ou parte delas.

Após a independência de Angola, estas histórias foram lembradas por membros do referido grupo, agora pessoas adultas, quando as novas autoridades decidiram remover as inúmeras estátuas coloniais, nomes de ruas e de cidades como Salazar, Carmona, Sá da Bandeira, Nova Lisboa, etc.

As estátuas removidas foram colocadas no Museu de História Militar, situado na fortaleza de São Miguel, ela própria símbolo colonial, apesar disso respeitado não só naquela fase mas atualmente com a grande campanha contrária ao centro comercial, construído no respetivo morro, por constituir, segundo os numerosos apoiantes da campanha, atentado a um símbolo da própria cidade.

Isto está longe de ser caso único.

Num ponto importante da capital angolana, com grande vista para a baía e junto a um dos maiores estabelecimentos de ensino, permanece a estátua de Monsenhor Alves da Cunha, que chegou a ser reitor do Liceu Nacional de Salvador Correia no fim dos anos 1930 e na década seguinte foi deportado para Portugal por razões políticas, numa altura de agitação também clandestina e também, pelo menos em parte, com forte presença de adolescentes criadores da Organização Socialista Angolana (OSA).

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João Mello

Além de Monsenhor Alves da Cunha outros marcos históricos foram publicamente mantidos. A réplica do padrão de São Jorge, colocado por Diogo Cão na foz do rio Congo (ou Zaire), continua nas proximidades do Soyo, hoje importante cidade petrolífera. As ruínas da catedral de São Salvador, em Mbanza Kongo, estão preservadas no quadro da área considerada património da Humanidade pela UNESCO, após grande campanha movida por Angola. O Palácio de Ferro, em estilo eiffeliano, foi até melhorado. Por outro lado, no extremo sul, Santa Clara foi mantido como nome do lado angolano de Oshikango, apesar das propostas em dar designação comum aos dois espaços dessa localidade fronteiriça.

Não muito longe, em Naulila, permanecem frente à Administração da vila os túmulos de dois soldados portugueses, mortos em 1915 na batalha ali ocorrida contra os alemães.

O Liceu Nacional Salvador Correia mudou oficialmente de nome e de grau de ensino, no entanto, o nome inicial permanece na grande fachada enquanto o enorme mural de azulejos retratando a reconquista portuguesa de Angola foi reparado como obra de arte. Já a estátua do próprio Salvador Correia, em pleno Largo do Palácio, foi removida numa antecipação de décadas sobre a atual campanha mundial contra agentes da escravatura.

Com efeito, Salvador Correia chefiou a expedição, mobilizada e financiada no Rio de Janeiro, para expulsar os holandeses de Angola e restabelecer a rota da escravatura com o Brasil, abrindo um novo ciclo administrativo que conduziria ao massacre de Ambuíla.

Depois da independência, no jardim da “rampa do liceu”, instalaram um busto de Lenine. Confirmando a frequente existência na História de Angola de atos clandestinos espontâneos, certa noite, o busto “levou sumiço” e nunca mais apareceu.

Há um caso de remoção provisória por motivo de obras em curso. A estátua da rainha Nzinga, erguida sobre o pedestal da antiga estátua portuguesa impropriamente designada por Maria da Fonte, no Largo do Kinaxixi, está no Museu de História Militar aguardando o fim daquelas obras. Mas pode ser contestada no âmbito da atual campanha contra protagonistas da escravatura. Nzinga foi uma das mais importantes fornecedoras de escravos da sua época e teve mesmo uma audiência especial com o governador (ou capitão-general) português no palácio da Cidade Alta. Para mostrar superioridade, o governador sentou-se mas não ofereceu nenhuma cadeira a Nzinga. Esta chamou uma de suas escravas e sentou-se nas costas dela, gesto visto do ponto de vista dos poderes em presença, como dignidade e altivez, Mas do ponto de vista da dignidade humana traduziu despotismo e desprezo, nada diferente da mentalidade colonial em relação ao povo.

Neste caso a estátua lembra a presença de mercadores africanos na escravatura, componente analisado por historiadores como o maliano Tidiane Diakhité – que muitos europeus usam para inocentar figuras a quem erigiram estátuas nas metrópoles. Nos regimes escravocratas, beneficiários hegemónicos ou subalternos e seus apologistas são criminosos, pois mantiveram uma economia-crime.  

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Padrão de São Jorge Administração Municipal do Soyo

As guerras das estátuas, como todas as guerras de memórias, transbordam atingindo figuras ou factos históricos recentes. Em Angola, William Tonet, diretor do jornal Folha 8, publicou um post ilustrado na página do Facebook sugerindo remoção da estátua erigida a Agostinho Neto numa praça de Luanda. Um comunicado do MPLA afirma que esse post “atenta contra a História e memória coletiva do Povo Angolano e revela falta de Patriotismo”.

Nesse mesmo âmbito recente há propostas de novas estatuas. A Unita propôs uma estátua conjunta a Agostinho Neto, Jonas Savimbi e Holden Roberto.

Conhecendo o espírito de grande parte dos angolanos, é provável que tivesse apoio a ideia de levantar uma estátua à escrava que virou cadeira na conversa entre Nzinga Mbandi e o governador. Ou aos soldados angolanos que também morreram em Naulila numa guerra que não era deles.

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