A Quinta do Ferro quer renascer mas da câmara só vem silêncio
Associação de moradores e proprietários tem um projecto pronto a avançar há três anos. As condições de habitabilidade continuam a degradar-se e a insegurança aumentou nos últimos meses.
Há umas semanas, quando a pandemia se tornou assunto sério em Lisboa, Rosa Gomes bateu a todas as portas da Quinta do Ferro e calculou que haveria umas 130 pessoas a morar naquele casario degradado. Desde há meses que a paciência se tornou um bem escasso neste pequeno bairro próximo da Graça, mas a aproximação do vírus a tão precária realidade levou proprietários e moradores a um limite que não julgavam possível. “Se houver aqui um surto de covid-19, a responsabilidade é exclusivamente da Câmara de Lisboa”, acusa José Manuel Rosa.
O presidente da Associação de Amigos da Quinta do Ferro, que congrega senhorios e inquilinos, tem passado os últimos tempos a tentar obter da autarquia um sinal de que o projecto de reabilitação do bairro, desenvolvido há mais de dois anos, é mesmo para avançar. Foi isso que lhe prometeram em 2017, mas desde então reina o silêncio.
“Temos o nosso projecto não sei em que gaveta, parado, à espera de um encontro entre a Habitação e o Urbanismo”, queixa-se José Rosa. “O pelouro do Urbanismo devia chamar-se cemitério de projectos.”
Há três anos, aproveitando um financiamento do programa autárquico BIP/ZIP de 50 mil euros, a associação pediu ao ateliermob um projecto de urbanismo e arquitectura que resolvesse os muitos problemas das habitações e do espaço público. Intervindo no edificado, os Amigos da Quinta do Ferro esperavam também poder intervir na realidade socioeconómica e cultural do bairro.
A Quinta do Ferro situa-se na encosta que une a Graça a Santa Apolónia, entre as ruas Leite de Vasconcelos e Entre Muros do Mirante. Em tão pequeno território acumulam-se dezenas de casas construídas precariamente e a muitas falta o saneamento e a água corrente. “Há pessoas que dormem de chapéu-de-chuva aberto para não lhes cair água em cima”, descreve José Rosa.
Rosa Gomes lembra-se dos primeiros tempos da associação de que é vice-presidente, em que as pessoas eram chamadas para a conversa com pão-de-ló, um truque que lhe permitiu ganhar a confiança dos outros residentes e conhecer os pátios e ilhas que muitas das casas formam. “Ninguém lá entrava. Havia um cão grande à entrada, ninguém lá entrava.”
De então para cá “os problemas agudizam-se de dia para dia”, lamenta José Rosa. E enquanto os seus e-mails para os vereadores Paula Marques (Habitação), Ricardo Veludo (Urbanismo) e até para Fernando Medina continuam sem resposta, a EMEL prepara-se para entrar no bairro e começar a tarifar o estacionamento, o que a associação encara como uma provocação. “É inadmissível no centro histórico não haver água. As pessoas gozam connosco: ‘Lavamos as mãos com quê?’”
Pressão imobiliária
O projecto do ateliermob prevê a reabilitação das casas e do espaço público, com a criação de uma praça, de um jardim infantil, de um parque de estacionamento subterrâneo e de uma escadaria para ligar a Rua Leite de Vasconcelos à Rua da Verónica. “Uma das coisas que nós queríamos era que os miúdos passassem pela Quinta do Ferro para chegar à Escola Gil Vicente”, explica o arquitecto Tiago Mota Saraiva.
Essa ideia permitiria integrar mais o bairro na cidade e, ao mesmo tempo, minorar um dos problemas que por ali mais se sente agora: o tráfico de droga. “É muito normal, em tempo de aulas, vermos aí miúdos de 14 ou 15 anos a vir comprar”, relata José Rosa. Por causa disso, acrescenta, “tem havido assaltos a casas e roubos por esticão” e aumentaram as ocupações ilegais de casas. “Esta semana estão umas pessoas, para a semana encontra aí colchões e tralha espalhada, já estão outras pessoas. À medida que as casas vagam, vão sendo ocupadas”, diz Rosa Gomes. José Rosa acredita que “se a reabilitação avançar, 80% da marginalidade desaparece”.
Os arquitectos também desenharam prédios novos de habitação em terrenos municipais. “Nós fizemos o nosso habitual processo de folha em branco e começou a surgir a ideia de fazer ali uma grande iniciativa pública”, diz Tiago Saraiva. “A câmara pode fazer ali habitação, tem uma comunidade mobilizadíssima.”
Com senhorios dispostos a investir, moradores a quererem melhores condições de vida e terrenos camarários à espera de solução, os Amigos da Quinta do Ferro não entendem o silêncio autárquico. O que José Rosa suspeita é que “há uma guerra contra os actuais proprietários”, uma esperança de que estes desistam e acabem por vender as suas casas. “Há uma grande pressão imobiliária sobre aquele território”, diz Tiago Mota Saraiva. “Estando nós a fazer o projecto, recebemos pedidos de imobiliárias e fundos para fazer projectos ali.”
O PÚBLICO questionou a Câmara de Lisboa sobre este assunto há duas semanas e não obteve respostas.