O pântano
A “geringonça” já lá vai, parece cheirar a bloco central. É o pântano a instalar-se na política, o fim de um ciclo e o início de uma outra coisa.
A semana foi de atribulações, indefinições, crises várias e alguns aproveitamentos. Mas, começo pela conclusão: o clima político mudou. Entregar o corolário logo no início do artigo parece estranho, atípico, mas permite passar logo para os vários exemplos que lhe dão corpo.
Sente-se há um país adiado a cada dia que passa. Não são só grandes coisas, também as há menores, areias na engrenagem, que mostram como se instala alguma confusão. O desconfinamento não trouxe a vitória sobre a pandemia, os números teimam em não baixar, a normalidade que a vida nos permite está longe daquela que desejamos. Tudo isso é verdade, mas parece ser apenas a ponta do icebergue. Parece que falta definição, certezas, garantias - a segurança sobre o futuro. E, se a pandemia nos levou parte dessa capacidade, é ao poder político que se entregam as restantes responsabilidades, por algum desnorte em que entrou.
A zona de Lisboa e Vale do Tejo deixou a nu as debilidades na resposta à covid-19. Depois de um confinamento em que saímos como exemplo internacional, o desconfinamento destruiu essas ilusões. Faltam profissionais, faltam meios, faltou prevenção. Como o tempo passa e a situação não muda, passou a faltar também a paciência. E a desorientação instalou-se. O presidente da Câmara de Lisboa atacou o Governo, a ministra defendeu-se dos ataques, o primeiro-ministro veio a jogo deitar água na fervura e Carlos César, com a sua diplomacia habitual, veio atiçar novamente o fogo. “'Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”, parece certeiro para este caso.
No lado da Educação, passam os dias e continuamos sem saber o que acontecerá em setembro. O regresso às aulas será presencial? Em que moldes? Com que horários e disciplinas? Silêncio, o ministro está em reflexão! Nem o portal para as matrículas está a funcionar como devia, levando as famílias ao desespero. O mesmo caos está instalado sobre a devolução dos manuais escolares, com o ministério a usar alunos para uma guerra parva com a decisão da Assembleia da República que eliminava a obrigação da devolução dos manuais.
E na Segurança Social? Somam-se os atrasos no processamento das reformas e pensões e ficam pendurados os pedidos dos trabalhadores para diversos apoios sociais. O teletrabalho e os serviços online estão a ser o calvário de quem trabalha no Estado ou de quem precisa de aceder aos serviços públicos. Veja-se, com mais um exemplo, o agendamento para entrega de cartões de cidadão renovados online do cartão do cidadão já chega a novembro, cinco meses de espera.
O que dizer da novela da TAP, em que as guerras do Conselho de Ministros se fazem com recados pelos jornais e ajustes de contas pelos comentadores televisivos? Uma novidade no que toca a guerras por procuração. Veja-se que até Lacerda Machado, amigo do primeiro-ministro, membro do conselho de administração da companhia aérea indicado pelo Estado e responsável pela cláusula contratual que permitiu a Neeleman sair com muitos milhões de euros no bolso, se sente à vontade para “contar” a sua versão da história em que o ministro Pedro Nuno Santos terá ajudado à desvalorização da TAP. Será só desnorte governamental?
Cereja no topo do bolo: o Governo tornou público que queria pensar o futuro próximo com Bloco de Esquerda e PCP, a quem carinhosamente chama de parceiros, para fazer um acordo com o PSD de Rui Rio para impedir mais avanços no Orçamento Suplementar. À falta de um projeto coerente, de um desígnio, resta a navegação à vista? A “geringonça” já lá vai, parece cheirar a bloco central. É o pântano a instalar-se na política, o fim de um ciclo e o início de uma outra coisa.
O novo ciclo será pensado? “Nunca desperdice uma crise grave”, disse Rahm Emanuel em 2008, o chefe de gabinete de Obama. Já antes Milton Friedman já havia dito coisas semelhantes. Não é de excluir. Basta ver como PS fez um acordo parlamentar com o PSD para desgraduar a nossa democracia, reduzindo a fiscalização do Parlamento ao Governo, e percebemos que a procissão ainda vai no adro.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico