Este anúncio a bicicletas não vai dar a volta a França
Entidade que regula o sector publicitário em França recusou anúncio do fabricante holandês de bicicletas VanMoof, que reflecte sobre os impactos negativos dos automóveis no espaço urbano. A polémica transpôs para o campo mediático um debate que está a ser feito em muitas cidades por esse mundo fora.
As grandes revoluções chegaram-nos pela televisão. Foi nela, por exemplo, que vimos o muro de Berlim a cair, e, nos últimos meses, por causa de um vírus que nos fechou em casa, vislumbramos o céu azul de cidades habitualmente escondidas sob um manto de poluição. Mas a autoridade francesa para a publicidade entende que há limites para o que se pode mostrar no pequeno ecrã e deu um parecer negativo a um anúncio que mostra um automóvel lindíssimo a diluir-se num líquido negro — petróleo? — para dar lugar a uma bicicleta.
O anúncio, uma criação digital, mostra-nos um desportivo de linhas atraentes cuja carroçaria resplandecente reflecte imagens de uma vida a que muitos europeus já mostraram não querer regressar depois de meses de confinamento — poluição, engarrafamentos, acidentes de trânsito — antes de se diluir para dar lugar, num plano final, a um novo modelo de bicicleta eléctrica do fabricante holandês VanMoof. Imagens excessivas, considerou a Autoridade de Regulação Profissional da Publicidade (ARPP).
“Certos planos apresentados nos reflexos da viatura parecem, a nosso ver, desproporcionais, e lançam uma imagem de descrédito sobre todo o sector automóvel”, criando, por outro lado, “um clima de ansiedade”, escreveu o organismo de auto-regulação interprofissional ARPP, num e-mail enviado à empresa sediada em Amesterdão.
Alterar uns planos? Não!
A entidade que tem entre os seus associados empresas do sector publicitário, dos media e também marcas, entre elas algumas do sector automóvel, sugeria que o problema poderia ser ultrapassado se alguns dos planos em causa fossem alterados. Entre as imagens que terão incomodado a ARPP estão a de um acidente de tráfego — morreram 3239 pessoas nas estradas francesas, em 2019 — e de uma fábrica lançando fumo para o ar. A de uma multidão tentando entrar numa estação de metro não gerou incómodo.
A resposta não demorou. Em declarações à FranceInfo, o director de comunicação da VanMoof recusou fazer “uma versão adocicada do anúncio em favor da indústria automóvel francesa”. “A nossa mensagem é forte, mas não contém nenhuma controvérsia e a poluição automóvel reflecte uma situação que muitos habitantes de cidades têm de enfrentar. Posso compreender que isso os possa incomodar, mas não deixa, por isso, de ser uma realidade”, afirmou Alfa-Claude Djalo, acusando a entidade reguladora gaulesa de falta de independência face a um sector que pesa 10% no bolo publicitário deste país. A decisão da ARPP é “inquietante”, continuou.
Gritar censura, para chamar a atenção
A acusação não ficou sem resposta. “É já um clássico atacar a independência que temos e tentar obter espaço de mediatização gratuito gritando ‘censura’, afirmou à FranceInfo o presidente da ARPP. “Não se deve cair no facilitismo da desacreditação [do concorrente] quando temos apenas de promover o nosso produto”, insistiu. “Em alguns momentos este anúncio cai no excesso com imagens que não têm razão de ser, como as dos fumos das chaminés industriais, que não têm qualquer relação com a indústria automóvel”, acrescentou.
A crítica a esta relação directa entre o objecto representado e as representações nele reflectidas tinha já sido antecipada pelo director criativo da VanMoof, que numa entrevista publicada a 10 de Junho no blogue da empresa holandesa explicou ao que vinham. Mais do que um anúncio anti-carros, Pascal Duval argumenta que o vídeo de 30 segundos exprime, praticamente sem palavras, uma reflexão sobre o momento colectivo que vivemos nos últimos meses.
Um novo dia a amanhecer
“Como sociedade, penso que estamos todos a reflectir nas nossas vidas, agora mesmo; estamos a pensar nas coisas que costumávamos fazer e nas coisas que poderíamos fazer melhor. A pandemia da covid-19 foi um choque tal no sistema que passamos a pensar em termos de um antes e depois — e agora temos de nos perguntar se queremos, realmente, retomar velhos hábitos, ou se devemos usar esta oportunidade para recomeçar”, argumentou.
“Time To Ride The Future” — “É tempo de montar/conduzir/pedalar, o futuro” — são, no ecrã, as únicas palavras, devedoras também de uma estética ligada ao universo dos automóveis, que sintetizam, com a polissemia própria da língua inglesa, o exercício visual deste anúncio provocador concebido pelos britânicos Builders Club, acompanhado por uma música que reforça a ideia de mudança. Em New Day, um clássico de Jackie Lomax, numa versão da irlandesa Lyra, escutam-se os versos “Im going to take all my loneliness / Im going to take all my pain / And wrap them up inside my memory / And never hear from them again / Cause there's a new day dawning”.
Esta polémica surge numa altura em que a indústria automóvel francesa — e a mundial, na verdade — se debate com as dores da pancada, fortíssima, da covid-19, situação que ainda não conseguiu atirar para trás das costas nem conseguirá, tão cedo, transformar em meras memórias de um mau período, como na letra da canção. O Governo francês teve mesmo de sair em socorro de um sector que, entre fabricantes, fornecedores de componentes e outros, abrange quatro mil empresas e emprega 400 mil pessoas, e que gera um volume de negócios de 155 mil milhões de euros, quase um terço dos quais relativos a exportações.
Vendas de carros a cair...
Com a venda de carros a cair em França e em todo o mundo — Portugal tem sido um exemplo disso — o Governo de Emmanuel Macron prometeu ajudas no valor de oito mil milhões de euros para manter à tona um sector que, para a VanMoof, mesmo fragilizado pela conjuntura e outros desafios a que tem respondido lentamente, como o das emissões de CO2 que contribuem para o aquecimento global, continua a ser poderoso. “O bloqueio da ARPP ao nosso anúncio surge num momento em que esta indústria está com um problema sério”, assinalaram os holandeses, em comunicado.
A VanMoof vê nesta atitude da entidade reguladora francesa um padrão presente noutras decisões controversas recentes. No início do ano, recorda, bloquearam uma campanha da Greenpeace que mostrava o degelo dos glaciares por ser “demasiado política” para ser mostrada no metro de Paris. E em 2016, uma campanha de outdoors dos Médicos do Mundo, sobre o preço exorbitante de alguns medicamentos essenciais, foi também “travada” para evitar “reacções negativas das companhias farmacêuticas”. “Não somos dados a teorias da conspiração, mas a ARRP já mostrou uma tendência de favorecimento de interesses corporativos, sobrepondo-os ao apoio a mudanças sociais relevantes.”
...e vendas de bicicletas a subir
Na verdade, com ou sem apoio da ARPP, essas mudanças estão à vista. E não foi sequer necessário nenhum anúncio anti-carros para que este modo de transporte passasse nestes últimos meses a ser visto, em países com muito menos utilizadores de bicicleta do que a Holanda e Dinamarca, como aquilo que é: um modo de transporte e não um instrumento de lazer.
No pós-covid, este veículo inventado no século XIX ressurgiu como solução para problemas de mobilidade urbana numa altura em que o transporte público retomou a sua actividade com fortes restrições de capacidade, para evitar aglomerações de pessoas. E em que, perante o cenário da despoluição sem precedentes, ainda que forçada por um vírus, muitos decisores municipais, e alguns governos, recusaram ver as ruas de novo ocupadas por milhões de automóveis, com os seus fumos de escape.
E o debate nem tem sido feito apenas em torno da poluição que os carros provocam, mas muito, também, sobre o território que eles ocupam em cidades onde o peão foi desapossado do direito ao espaço público. Cidades nas quais os passeios, as praças e os jardins que todos passamos a desejar ocupam as sobras do que os planeadores foram destinando, nas últimas décadas, às faixas de rodagem.
Paris quer menos automóveis
Dado o seu menor impacto ambiental, e o facto de reclamar menos espaço, o modo ciclável — que é considerado, nos Países Baixos, como uma forma um pouco mais rápida de andar a pé — tem ganho preponderância e instituições como a União Europeia, a Organização Mundial de Saúde, a Agência Internacional de Energia e o agrupamento de cidades C40, entre outras, recomendam que se multiplique o investimento na infra-estrutura para bicicletas como forma de promover uma retoma económica mais amiga do ambiente, da saúde e da própria justiça social.
E o mesmo país em que um carro a derreter gerou esta polémica é, no mundo, um dos que mais rapidamente assimilou essa mensagem. A presidente da Câmara de Paris voltou a ser eleita para o cargo, no último domingo, depois de ter acelerado, no desconfinamento, a construção de centenas de quilómetros de ciclovias, algumas delas em ruas onde o automóvel dominava mas não chegou a ter oportunidade de reaparecer.
O projecto “O bairro do quarto-de-hora”, que pressupõe criação de grandes quarteirões em que seja possível chegar a pé e de bicicleta, em 15 minutos, aos serviços essenciais, era uma das bandeiras de Anne Hidalgo. E apesar de pressupor a diminuição do espaço público destinado ao automóvel, para alargamento de passeios, ciclovias e criação de zonas de convivência – o que lhe valeu, durante a campanha, muitas críticas – não lhe tirou a cadeira do poder.
Incentivos fiscais para pedalar
O próprio Governo francês, que não quer, obviamente, ver destruído o sector automóvel — cuja transição para novos combustíveis não-fósseis será essencial para o combate às alterações climáticas — percebeu, contudo, que as ruas do país não podem ficar entregues aos carros. O apoio imediato à mobilidade ciclável no pós-pandemia triplicou de 20 para 60 milhões de euros, e na calha está, por exemplo, a criação de incentivos fiscais para os trabalhadores que se desloquem de bicicleta para o trabalho.
Em França, como em Portugal e noutros países, depois de três meses difíceis, a indústria das bicicletas não tem mãos a medir para a procura — que nos EUA, por exemplo, explodiu para números impensáveis no início do ano — e já antevê, ao contrário do sector automóvel, que 2020 será melhor do que 2019, muito a reboque de um incremento nas vendas das eléctricas. Essas que também não escapam à sua dose de polémica, como os sucedâneos de quatro rodas, pela dependência do lítio, cuja mineração tem também impactos ambientais e vem sendo contestada em vários países.
Mas nem isso nem o boicote francês ao anúncio da VanMoof deverão fazer mossa nas vendas deste veículo que, no início do século XX, foi visto como um instrumento de emancipação das mulheres (voltou a acontecer recentemente, no Irão), e que garantiu a mobilidade de milhões de operários antes de perder, para o automóvel, a primazia, nas nossas cidades. Enquanto muitas delas lutam para que as biclas voltem a ser bem vistas e usadas pelos seus habitantes, outras, como a Área Metropolitana de Manchester, vão agradecendo com mensagens na rua a quem já leva a vida pedalando para o trabalho e para a escola: por libertarem lugares nos autocarros e comboios para aqueles que, neste momento difícil, precisam mesmo deles, sem poluírem o ar que é de todos.