Giovani: cada vez que parecia estar a acabar, violência recomeçava com mais força
No despacho de acusação, o Ministério Público recria o filme dos acontecimentos que conduziriam à morte do estudante cabo-verdiano. Aviso: não é uma leitura recomendável às pessoas mais sensíveis.
O despacho da acusação que o Ministério Púbico deduziu contra os suspeitos do homicídio de Luís Giovani Rodrigues e da tentativa de homicídio de Valdo A., Elton B. e Gailson M., estudantes do Instituto Politécnico de Bragança oriundos de Cabo Verde, é uma narrativa imprópria para pessoas sensíveis. De cada vez que parece que vai acabar, a violência recomeça com mais força.
Não se conheciam. O conflito despontou depois das 2h30 de 21 de Dezembro de 2019, dentro do Lagoa Azul Bar, já na fila para pagar. Tentado encurtar a espera, Valdo abordou duas raparigas, oferecendo-lhes dinheiro para que pagassem o seu consumo e o dos seus três amigos. Julgando que estava a assediar as suas namoradas, Bruno F. e Rogério M. provocaram “uma troca de palavras com empurrões mútuos”.
Aconteceu tudo muito rápido. Os funcionários trataram logo de lançar água na fervura. Volvidos poucos minutos, saíram porta fora os dois casais e os amigos. Por sua vez, Valdo foi aconselhado a aguardar um pouco ali dentro, fazendo tempo para que os outros se afastassem da porta do estabelecimento de diversão nocturna, na Avenida Abade de Baçal. E ali ficou com os três amigos. Aguardaram uns 20 minutos.
Entretanto, lá fora, Bruno F., então com 29 anos, desempregado, precipitara-se para o seu carro, um Audi estacionado a uns metros, “no cimo das escadas de acesso à Rua Emídio Garcia”. Com ele tinham seguido Ângelo P., um estudante de 21 anos que já foi bombeiro. E Bruno C., de 28 anos, também a estudar, depois de anos no Exército Português. Decidido a confrontar Valdo, Bruno F. pegara num “pau com cerca de um metro de comprimento e uma moca numa das extremidades”. Os outros tinham-no agarrado, pedindo-lhe que saísse dali. E, naquele momento, ele até anuíra. Ângelo P. abandonara o local. E Bruno C. voltara à porta da discoteca.
O resto do grupo (quatro homens e três mulheres) ficara ali, porventura a discutir o episódio. Quando Bruno C. chegou, caminharam todos até às escadas de acesso à Rua Emídio Garcia. Rogério M. e a namorada foram mais devagar, ficaram para trás. De repente, “foram abordados” por Gailson, Elton, Valdo e Giovani, acabados de sair do bar, e, segundo o MP, “travaram-se de razões”. Ao ouvir o barulho, os outros voltaram atrás. Num abrir e fechar de olhos, numa cena de “agressões mútuas com murros e pontapés”, envolveram-se os quatro rapazes e quatro homens (Tiago A., André P., Tiago B. e Bruno C.), alheios ao conflito inicial.
Na versão do MP, Gailson, Elton, Valdo e Giovani fugiram pela Rua das Beatas, em direcção à Rua Rainha Santa Isabel, mas foram interceptados por Bruno F., que ainda tinha o pau e com isso “desferiu várias pancadas no corpo dos quatro ofendidos”. Ao ser atingido, Valdo agarrou o pau e Bruno F. “caiu ao solo partindo o pau em dois”. Não tardaram a aparecer Carlos L., Bruno C., Tiago B., André P., Jorge L., “que empunhava uma soqueira metálica com espigão basculante”, e Tiago A., “que empunhava um cinto preto com fivela de metal prateado”. O pau partido continuava no chão. Bruno C. pegou na parte inferior do pau e Bruno F. na outra.
De um lado, quatro estudantes, entre os 19 e os 23. Do outro, três desempregados, um electricista, um técnico de saúde, um segurança, um estudante com treino militar, com idades compreendidas entre 23 e 35 anos. “Mediante a execução de um plano a que, naquelas circunstâncias, todos aderiram” – acusa o MP – “agrediram, com recurso a pontapés, murros, pancadas com o cinto, paus e a soqueira os quatro ofendidos”.
Por um instante, Valdo, Gailson e Elton conseguiram escapar, mas Giovani não teve a mesma sorte. Foi “rodeado por todos os arguidos”. Já prostrado no chão, Jorge L. “desferiu-lhe vários murros com a soqueira”. Tiago A. “desferiu-lhe várias pancadas com o cinto”. Bruno C. “várias pancadas com o pedaço de pau que empunhava”. E Bruno F. “várias pancadas com o pedaço de pau composto com a moca na extremidade”. E os outros três “vários pontapés”. Perante aquela desproporção, os rapazes voltaram atrás. Sem saber bem como, retiraram Giovani do local, pondo-se todos em fuga em direcção à escadaria da Travessa dos Negrilhos, que dá acesso à Avenida Sá Carneiro.
Conforme o MP, os suspeitos correram atrás dos quatro rapazes, mas viram um carro patrulha e pararam, para não chamar a atenção. Temendo o que viria a seguir, Bruno F. telefonou a Ângelo P.. E ele foi, com a namorada, ao seu encontro, no cimo da escadaria da Travessa dos Negrilhos. Bruno F. entregou-lhe a parte superior do pau e pedindo-lhe que a escondesse. Só então o grupo dispersou.
Giovani não foi longe. Na Avenida Sá Carneiro, pediu para pararem e sentou-se. Tinha um inchaço e um ferimento na testa. Queixava-se de dores. O MP não faz menção a isso, mas, ao que os rapazes contaram ao jornal Contacto, dois voltaram atrás à procura da carteira e do telemóvel. Giovani e outro ficaram à espera. Preocupado com os dois que tinham voltado atrás, esse não deu por Giovani a afastar-se.
Giovani foi encontrado pela patrulha, caído. Conduzido para a Unidade Hospitalar de Bragança, foi transferido para o Hospital de Santo António, no Porto. Morreu na madrugada de 31 de Dezembro, “na consequência das lesões traumáticas crâniomeningo-encefálicas, provocadas pelas agressões”. A sua morte motivou manifestações em Portugal e em Cabo Verde de solidariedade com as vítimas, pela não-violência e contra o racismo (embora as autoridades não tenham encontrado indícios de ódio racial, mas de machismo).
A Polícia Judiciária só chegou ao caso depois da morte de Giovani. Os investigadores viram o que fora gravado pelas câmaras de vigilância do bar Lagoa Azul. Interceptaram mensagens e conversas telefónicas entre os suspeitos. Fizeram buscas nas suas casas e nos seus carros. Detiveram-nos. Interrogaram-nos. Ouviram mais de 30 testemunhas. Organizaram a reconstituição dos acontecimentos.
Já esta segunda-feira, soube-se que o MP acusou Bruno F., Jorge L., Carlos L., Bruno C., André P., Tiago B. e Tiago A. de três crimes de homicídio qualificado na forma tentada e um crime de homicídio qualificado consumado, considerando que “actuarem em comunhão de esforços”, por “motivo fútil”, “com o objectivo de tirar a vida à vítima Luís Giovani, como conseguiram, e a vida dos ofendidos Gailson, Valdo e Elton, o que não lograram alcançar por motivos alheios à sua vontade”. Jorge L. e Carlos L. responderão também pelo crime de posse de arma proibida. Não tendo participado nas agressões, Ângelo P. responderá pelo crime de favorecimento pessoal consumado.