Pedrógão: as costas largas da justiça
Não se percebe que utilidade tem e a quem serve apoucar assim a justiça, sem fundamento sério, minando a confiança pública no regular funcionamento de uma instituição tão vital para a saúde do Estado de direito.
Na homenagem às vítimas do incêndio de Pedrógão, o Presidente da República resolveu apontar o dedo à lentidão da justiça, como o aspecto que lhe merece mais reparo nestes três anos em que, pelos vistos, tudo o resto está bem. A justiça tem as costas largas mas a crítica não tem razão de ser.
No processo em que se apuram as responsabilidades directas do incêndio, o inquérito terminou em pouco mais de um ano, com a acusação de 13 arguidos por crimes de homicídio e ofensas à integridade física. Houve instrução, concluída em poucos meses com a pronúncia de três presidentes de câmara, um comandante de bombeiros e funcionários da EDP e da Ascendi. O recurso, apesar de ter estado parado três meses, por causa da lei que suspendeu os prazos no período da crise covid-19, foi decidido ontem pelo Tribunal da Relação de Coimbra, podendo o processo seguir agora para julgamento. No outro caso, que trata das irregularidades na reconstrução das casas, o Ministério Público iniciou o inquérito logo que surgiram os primeiros indícios e concluiu-o num ano, com a acusação de 28 pessoas, por crimes de burla, prevaricação, falsificação de documentos, falsidade informática e falsas declarações. A acusação foi confirmada pelo juiz de instrução em poucos meses. O início do julgamento está marcado para Setembro. Tendo em conta que estamos a falar de processos de extrema complexidade, em que foi necessário aguardar a conclusão de relatórios técnicos, perícias e outras diligências de prova e assegurar as garantias de defesa previstas na lei, não se vê, sinceramente, como podiam ter andado mais rápido, ao ponto de merecerem o primeiro lugar nas preocupações do Presidente da República.
Não se percebe que utilidade tem e a quem serve apoucar assim a justiça, sem fundamento sério, minando a confiança pública no regular funcionamento de uma instituição tão vital para a saúde do Estado de direito. Para sarar as feridas da tragédia que ceifou tantas vidas e causou tanto sofrimento, seria mais produtivo concentrarmo-nos na correcção das causas estruturais mais profundas e evitarmos que amanhã aconteça o mesmo noutro lado qualquer. Já foram resolvidos os problemas da desertificação, do envelhecimento populacional, do abandono da agricultura e das desigualdades no desenvolvimento social e económico do país rural? O ordenamento do território e da floresta já está feito? Os sistemas de comunicações, que custaram milhões e falharam escandalosamente no dia do incêndio, já foram substituídos? Já se corrigiram as falhas de coordenação, que atrasaram o combate ao incêndio e o socorro às vítimas, muitas delas atribuíveis à desorientação causada pela presença desnecessária de responsáveis políticos nos centros de comando, desdobrando-se em briefings e declarações à imprensa e atrapalhando a tomada de decisões operacionais? As irregularidades detectadas pelo Tribunal de Contas na gestão pública dos milhões de donativos solidários no fundo REVITA estão a ser resolvidas? As pessoas que ficaram sem casa, sem emprego, sem meios de subsistência, já foram todas acudidas? Até parece que isto tudo, que está fora da esfera de actuação e responsabilidade da justiça, já está tratado.
Se apontar o dedo à lentidão da justiça nos processos de Pedrógão é errado, essa crítica em geral também não é justa. Como já demonstrei neste jornal (“É mesmo preciso reformar a justiça de alto a baixo?”, 17/7/2018), ao contrário do que dizem repetidamente os nossos responsáveis políticos, inquinando intencionalmente a opinião pública, contra a verdade dos factos, o desempenho do sector da justiça tem tido uma evolução positiva constante e muito melhor do que a da generalidade dos serviços públicos. Ainda há menos de um mês se soube que a justiça cível teve uma redução de 42% de pendências em 5 anos, com uma impressionante taxa de resolução de 108,25% e um tempo médio de duração de 12 meses, o mais baixo desde que há registo. Somos o terceiro pais europeu onde as pessoas mais acreditam na independência dos tribunais em relação ao governo (Relatório da Agência para os Direitos Fundamentais da União Europeia, 24/6/2020). Mas parece que nada disto interessa, quando a demagogia fácil toma o lugar da razão e da responsabilidade.