A moral
É bom que se perca a imagem de professores privilegiados no Ensino Superior. Na verdade, a Universidade é cada vez mais precária.
Existe uma diferença entre poucos casos (algo residual), muitos casos e todos são o caso. Há situações em que um caso é sempre um caso a mais (um juiz corrupto, um médico mal praticante, um professor que maltrata ou assedia). Mas importa verificar quando é que um caso significa um ato isolado e quando é que significa uma generalização.
A capa do jornal PÚBLICO de dia 18 de junho, com o título “Universidades são incapazes de impedir acumulação de vencimentos, avisa Tribunal de Contas”, demonstra uma tendência para fazer títulos, esquecendo a outra parte.
Vamos a factos. O relatório do Tribunal de Contas reconhece que os casos de violação de exclusividade são residuais.
O relatório demonstra, sem aprofundar, que apenas 52% dos docentes possuem exclusividade. Ora quase metade dos docentes não a tem, porque são precários.
É bom que se perca a imagem de privilegiados. Na verdade, a Universidade é cada vez mais precária. E vinco a diferença entre uma centena de casos em 14 mil (em vários anos de auditoria) e 13.750 precários. Reforço em especial um número: 1635 sem remuneração. Quando colocamos estes na equação, percebemos melhor o nosso incómodo com o problema do outsourcing e gestão de milhões de euros de fundos públicos por entidades privadas sem fins lucrativos, para os quais o Tribunal de Contas não tem dado atenção (nem vimos um título de jornal a toda a página).
Toquemos no cerne da questão, que é mais simples. Ela traduz o incómodo do Tribunal de Contas sobre a decisão de várias instâncias, incluindo de diretivas europeias, de que a declaração de rendimentos tem informações pessoais do foro privado.
Note-se, a declaração de IRS contém a vida pessoal. Não é apenas se indica se nos divorciámos, ou não, com quem moramos (pais, conjugue, sozinho), ou deixamos de morar. É também a exposição da vida da outra pessoa que consta dessa declaração de rendimentos.
Numa era de cruzamento de dados seria fácil implementar um outro sistema que não expusesse de forma tão flagrante a vida pessoal de cada um. Mas se calhar o problema é que em vez do princípio de justiça, se quer antes impor apenas o moralismo. E se calhar o próprio título roça um pouco nesse mesmo mal. Já a Inquisição sabia que a inveja do vizinho alimenta o controlo social.
Não posso terminar sem tocar na verdade, que transforma o título numa falácia. É que não só os docentes com exclusividade continuam a ser admoestados para entregar a declaração de IRS (mesmo quando já foi visto que tal é ilegal), como os tais 13.750 docentes precários são todos eles contactados pelas universidades (e politécnicos), para entregarem uma declaração de acumulação de funções. Até a própria pertença a um centro de investigação que não seja o do politécnico ou universidade é alvo de controle e admoestação (para não dizer assédio).
Quando se fala em universidade feudal-neoliberal é também disto que estamos a tratar. O controlo existe e não é nada pouco. Não raras vezes toca mesmo na vida pessoal de cada um (com quem está, se tem filhos, se vai engravidar...).
O Tribunal de Contas só quis dar mais um “empurrãozinho”, perante um parecer da Secretaria Geral de Educação e Ciência que demonstrava que existiam outras vias menos danosas e que cumpriam exatamente com o mesmo propósito.
Talvez se perguntem afinal quantos são os casos de professores que violaram a exclusividade? Elucidantemente, o relatório não diz.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico